• Ilustríssima

    Monday, 06-May-2024 15:08:31 -03

    Leia trecho de romance de Ngugi wa Thiong'o, convidado da Flip deste ano

    NGUGI WA THIONG'O
    tradução ROBERTO GREY
    ilustração MARIANA SERRI

    24/05/2015 02h02

    SOBRE O TEXTO Este trecho é uma parte do capítulo 14 de "Um Grão de Trigo", romance que ficcionaliza os fatos da independência, ou Uhuru, do Quênia. O livro, publicado originalmente em 1967, terá sua primeira edição no Brasil pela Alfaguara, em junho; no mês seguinte, o autor vem ao país para participar da Flip.

    *

    O Quênia conquistou sua Uhuru dos ingleses em 12 de dezembro de 1963. Um minuto antes da meia-noite, as luzes foram desligadas no estádio de Nairóbi, de modo que as pessoas de todo o país e do mundo que haviam se reunido ali para a cerimônia foram tragadas pela escuridão. No escuro, a Union Jack foi rapidamente baixada. Quando então as luzes se acenderam, a nova bandeira do Quênia tremulava desfraldada, acenando no ar. A banda da polícia tocou o hino nacional, e a multidão aclamou sem parar quando viu que a bandeira era preta, vermelha e verde. A aclamação soava como um grande estalo de muitas árvores caindo na lama grossa do estádio.

    Foto Marlene Bergamo/ Folhapress

    Na nossa aldeia, a despeito do chuvisco, homens, mulheres e crianças haviam se espalhado nas ruas, onde dançavam e cantavam na chuva. Por causa da escuridão, botavam os lampiões nos degraus da porta para iluminar as ruas. Como sempre nessas ocasiões, alguns jovens passeavam em grupos, levando lanternas, espreitando e cochichando nos cantos escuros e na periferia, na verdade procurando companhia amorosa na multidão. As mães avisavam às filhas para tomar cuidado para não serem violadas no escuro. As garotas dançavam no meio, provocantes, arrebitando os traseiros, sabendo que estavam sendo observadas pelos homens nos cantos. Todo mundo estava à espera de que algo acontecesse. Essa "expectativa" e a incerteza que a acompanhava –como uma mulher dividida entre o medo e a alegria, nas contrações do parto– eram uma corda esticada sob os berros, assobios e risadas. As pessoas iam de rua em rua cantando. Aclamavam Jomo, Kaggia e Oginga. Recordavam Waiaki, que mesmo antes de 1900 desafiara os brancos que vieram para Dagoreti, na esteira de Lugard. Recordavam também os heróis de nossa aldeia. Criavam palavras para descrever as façanhas de Kihika na floresta, feitos apenas igualados pelos de Mugo na trincheira e nos campos de detenção. Misturavam hinos de Natal com cantigas e danças só executadas durante ritos de iniciação, quando os garotos e garotas são circuncisados, assumindo a responsabilidade de homens e mulheres. E sob tudo isso estava o refrão que nos seguia de uma rua a outra. Em algum ponto, uma mulher sugeriu que a gente fosse cantar para Mugo, o ermitão, na sua cabana. O grito foi adotado pela multidão que, mesmo antes de a decisão ser tomada, já havia começado a furar o chuvisco e a escuridão até a cabana de Mugo. Por mais de uma hora a cabana ficou sitiada. O nome dele estava em todos os lábios. Tecemos novas lendas em torno de seu nome e imaginamos façanhas. Esperávamos que Mugo saísse e se juntasse a nós, mas ele não abriu a porta diante de nossas batidas. Quando chegou a hora, à meia-noite, as pessoas deram um longo berro. Então as mulheres entoaram as cinco Ngemi para dar as boas-vindas a um filho, ao nascer ou na circuncisão. Isso elas cantaram para Kihika e Mugo, os dois heróis da libertação pertencentes à nossa aldeia. Logo depois, nos dispersamos para nossas várias cabanas para esperar pela manhã, quando as comemorações da Uhuru realmente começariam.

    Mais tarde da noite o chuvisco se transformou numa chuva pesada. Os raios, seguidos de trovões, iluminavam de vermelho e branco as nossas cabanas, embora a luz só se filtrasse pelas rachaduras nas paredes. O vento aumentou com a chuva. Um som uivante, junto de um contínuo ribombar, vinha das árvores e cercas se vergando e quebrando, enquanto o vento e a chuva açoitavam os galhos e as folhas. Alguns telhados de palha trançada estragados criavam muitas goteiras, que faziam poças no chão. Para não ficarem ensopadas, as pessoas não paravam de mudar as camas de um lugar para outro, apenas para serem incomodadas por uma nova goteira.

    O vento e a chuva eram tão fortes que algumas árvores foram arrancadas pela raiz, enquanto outras quebraram no tronco ou perderam os galhos.

    Foi o que vimos na manhã seguinte quando fomos a um campo perto de Rung'ei, onde ocorreriam as danças e eventos esportivos para comemorar a Uhuru. As plantações nas encostas do vale ficaram bastante prejudicadas. A água a correr cavara valas que agora serpenteavam pelos campos inclinados. Pés de batata e feijão revirados jaziam em toda parte no chão do vale. As folhas dos pés de milho estavam muito rasgadas.

    A própria manhã estava tão encoberta que temíamos que o dia não ganhasse vida. Mas a chuva parara. O ar estava doce e fresco, e um calor íntimo se transfundia da terra fértil para os nossos corações.

    NGUGI WA THIONG'O, 77, é dramaturgo e romancista queniano.

    ROBERTO GREY, 74, é tradutor.

    MARIANA SERRI, 32, é artista plástica.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024