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    Trecho do livro 'O Diário de Guantánamo', de Mohamedou Ould Slahi

    MOHAMEDOU OULD SLAHI
    tradução DONALDSON M. GARSCHAGEN E PAULO GEIGER

    24/05/2015 02h06

    Os espaços foram colocados nesta versão on-line no lugar das tarjas pretas da censura ao longo do livro.

    *

    Em 4 de setembro de 2002, fui transferido para ________ e com isso os interrogadores acabaram com meu isolamento e me puseram com a população geral. Por um lado, foi difícil para mim deixar os amigos que tinha acabado de fazer, mas eu estava animado quanto à ida para um bloco totalmente normal, para ser um detento totalmente comum. Estava cansado de ser um detento "especial", percorrendo o mundo inteiro contra a minha vontade.

    Cheguei a ________ antes do pôr do sol. Pela primeira vez em mais de nove meses puseram-me numa cela de onde podia ver a planície.1 E pela primeira vez eu podia falar com meus colegas detentos e vê-los ao mesmo tempo. Puseram-me em ________ entre dois sauditas do sul. Ambos eram amigáveis e divertidos. Os dois tinham sido capturados ________ Quando os prisioneiros tentaram se livrar do Exército paquistanês, que estava agindo no interesse dos Estados Unidos, um deles, um argelino, arrebatou um AK-47 de um guarda. e atirou nele. Na confusão, os detentos ________ assumiram o controle ________; os guardas fugiram, e os detentos fugiram também -mas só até onde outra divisão ________ dos Estados Unidos os aguardava, e foram capturados de novo. O incidente de. resultou em muitas baixas e ferimentos. Vi um detento argelino que ficou completamente inválido por causa da quantidade de ferimentos a bala que sofrera.

    No início eu estava bem em ________, mas as coisas começaram a ficar feias quando alguns interrogadores passaram a praticar métodos de tortura em alguns detentos, embora timidamente. Até onde ouvi e presenciei, o único método praticado no início foi o do quarto frio, toda noite. Conheço um jovem saudita que era levado para interrogatório toda noite e trazido de volta a sua cela pela manhã. Não sei os detalhes do que exatamente acontecia com ele porque ele era muito calado, mas meus vizinhos me contaram que ele se recusava a falar com seus interrogadores ________ também me contou que o tinham posto no quarto frio duas noites seguidas por ter se recusado a cooperar.

    A maioria dos detentos a essa altura se recusava a cooperar, depois de ter transmitido tudo que, em sua opinião, era relevante em relação a seus casos. As pessoas estavam desesperadas e cada vez mais cansadas de serem interrogadas o tempo todo, sem esperança de ver aquilo terminar. Quanto a mim, era relativamente novo ali e queria tentar minha sorte: talvez meus colegas detentos estivessem enganados! Mas acabei indo de encontro à mesma parede de tijolos, como todos os outros. Os detentos estavam ficando mais preocupados quanto a sua situação e ao fato de não haver um devido processo legal, e as coisas começaram a piorar com a utilização de métodos dolorosos para extrair informação dos prisioneiros.

    Em meados de setembro de 2002, uma,________ me trouxe para interrogatório e se apresentaram como a equipe que ia tratar do meu caso durante os próximos dois meses.2

    "Por quanto tempo vou ficar sendo interrogado?"

    "Pelo tempo que o governo tiver perguntas a lhe fazer!"

    "E quanto tempo é isso?"

    "Só posso lhe dizer que você não vai ficar aqui mais de cinco anos", disse ________ A equipe se comunicava comigo por intermédio de um intérprete do árabe, que parecia ________

    "Não estou disposto a que me façam as mesmas perguntas repetidas vezes."

    "Não, temos algumas perguntas novas." Mas, como se viu depois, eles estavam me fazendo as mesmas perguntas que me faziam havia três anos. Mesmo assim, eu estava relutantemente cooperando. Eu não via, honestamente, nenhuma vantagem em cooperar. Só queria ver até onde ia aquela situação.

    Mais ou menos na mesma época outro interrogador ________ me trouxe para um interrogatório. Ele era ________, um cavanhaque bem aparado, e falava ________ com sotaque ________. ________. Ele foi direto e até compartilhou comigo o que ________ sobre mim. ________ falava, e falava, e dizia algo mais: ele estava interessado em conseguir que eu trabalhasse para ele, como tinha tentado como outros árabes do norte da África.3

    "Na próxima quinta-feira, marquei um encontro com ________ Você vai falar com eles?"

    "Sim, vou." Esta foi a primeira mentira que eu detectei, pois ________ me tinha dito: "Nenhum governo estrangeiro vai falar com você aqui, só nós, americanos!"4 Na verdade, eu ouvira falar que muitos detentos se encontraram com interrogadores não americanos, tais como ________ estavam ajudando os Estados Unidos a extrair informação dos detentos ________ Os interrogadores ________ e os ________ ameaçaram torturar alguns entrevistados quando voltassem para casa.

    "Espero ver você em outro lugar", disse o interrogador ________ a ________

    "Se nos encontrarmos no Turcomenistão você vai falar muita coisa!", o interrogador ________ disse a ________5

    Mas eu não estava com medo de falar com ninguém. Não tinha cometido crimes contra ninguém. Eu até queria falar, para provar minha inocência, uma vez que o lema dos americanos era "detentos no GTMO são culpados até provarem sua inocência". Eu sabia o que me esperava quando chegasse a vez dos interrogadores ________, e queria desabafar.

    O dia chegou, e os guardas me pegaram e levaram ________, onde os detentos usualmente encontravam ________. Dois cavalheiros ________ estavam sentados do outro lado da mesa, e eu olhava para eles, acorrentado ao chão. ________, que fazia o papel do sujeito mau durante o interrogatório. Nenhum deles se apresentou, o que era completamente contrário a ________; só ficaram lá diante de mim como se fossem fantasmas, igual ao resto dos interrogadores secretos.6

    "Você fala alemão ou precisamos de um intérprete?", perguntou o ________.

    "Infelizmente não", respondi.

    "Bem, você compreende a gravidade da questão. Viemos de ________ para falar com você."

    "Pessoas foram mortas", continuou o mais velho.

    Eu sorri. "Desde quando vocês têm permissão para interrogar pessoas fora ________??"

    "Não estamos aqui para discutir as bases jurídicas de nosso interrogatório!"

    "Eu poderia, em algum momento futuro, ter a chance de falar com a imprensa e denunciar vocês", eu disse. "Embora não saiba seus nomes, eu os reconhecerei em fotografias, não importa o tempo que levar até lá!"

    "Você pode dizer o que quiser, não vai conseguir nos atingir." Sabemos o que você andou fazendo", disse ele.

    "Então vocês estão claramente se valendo da ilegalidade deste lugar para extrair de mim informação?"

    "________ Salahi, se quiséssemos, poderíamos pedir aos guardas que o pendurassem na parede para chutarmos o seu traseiro!"7 Quando ele mencionou os caminhos tortuosos de sua maneira de pensar, meu coração começou a bater mais forte, porque eu estava tentando me expressar cautelosamente e ao mesmo tempo evitar a tortura.

    "Você não me assusta, não está falando com uma criança. Se continuar a falar comigo nesse tom, pode arrumar suas coisas e voltar para ________"."

    "Não estamos aqui para processar você ou assustá-lo, só ficaríamos gratos se você respondesse a algumas perguntas que temos para fazer", disse ________

    "Veja, estive em seu país, e você sabe que nunca me envolvi em nenhum tipo de crime. Além do mais, com que vocês estão preocupados? Seu país nem sequer está ameaçado. Eu vivi pacificamente em seu país e nunca abusei de sua hospitalidade. Sou muito grato por toda a ajuda que recebi de seu país; não apunhalo pelas costas. Então que teatro é esse que vocês estão fazendo comigo?"

    "________ Salahi, sabemos que você é inocente, mas não fomos nós que o capturamos, foram os americanos. Não estamos aqui em nome dos Estados Unidos. Trabalhamos para ________ e ultimamente evitamos alguns atentados bem ruins. Sabemos que não há possibilidade de que você saiba dessas coisas. No entanto só queremos perguntar a você sobre dois indivíduos, ________, e ficaríamos gratos se você respondesse a algumas perguntas sobre eles.

    "É bem engraçado que vocês tenham vindo de ________ para me fazer perguntas sobre sua própria gente! Esses dois indivíduos são bons amigos meus. Frequentávamos as mesmas mesquitas, mas não tenho conhecimento de que estivessem envolvidos em quaisquer operações terroristas."

    A sessão não durou muito mais do que isso. Eles me perguntaram como eu estava passando e como era a vida no campo e se despediram de mim. Nunca mais vi ________ depois disso.

    Enquanto isso, ________ continuaram a me interrogar.

    "Você conhece este sujeito, ________?", perguntou ________

    "Não, não conheço", respondi com sinceridade.

    "Mas ele conhece você!"

    "Sinto muito, mas vocês devem estar com outra pasta, não a minha!"

    "Não, nós lemos a sua pasta meticulosamente."

    "Podem me mostrar a fotografia dele?"

    "Sim. Vou lhe mostrar amanhã."

    "Está bem. Talvez eu o conheça com outro nome!"

    "Você sabe algo sobre as bases americanas na Alemanha?"

    "Por que está me perguntando isso? Não fui para a Alemanha a fim de estudar as bases americanas, nem estou interessado nelas de forma alguma!", respondi com raiva.
    "Meu povo respeita detentos que falam a verdade!", disse ________,enquanto ________ tomava notas. Captei a insinuação de que ele estava me chamando de mentiroso de maneira bem estúpida. A sessão estava terminada.

    No dia seguinte ________ me chamou à parte no ________ e me mostrou duas fotos. A primeira acabou se revelando de ________, que era suspeito de ter participado do ataque de 11 de Setembro e fora capturado ________ A segunda foto era de ________, um dos sequestradores do 11 de Setembro. Quanto a ________,nunca tinha ouvido falar dele, nem sequer o vira, e quanto a ________, pensei já ter visto o sujeito, mas onde e quando? Não tinha a menor pista! Mas também pensei que o sujeito deveria ser muito importante, pois ________ estavam juntos, agindo rápido para encontrar uma ligação minha com ele.8 Naquelas circunstâncias, neguei ter visto o sujeito algum dia. Considerando bem, que aspecto teria o caso se eu dissesse que tinha visto o sujeito, mas não lembrava onde e quando? Que interrogador iria acreditar em algo assim? Nenhum! E, para ser honesto, eu estava assustadíssimo.

    A equipe ________ me chamou novamente no dia seguinte e mostrou-me a foto de ________, e eu neguei conhecê-lo, da mesma forma que tinha feito no dia anterior. Minha negativa de conhecer um homem que eu na verdade não conhecia, só tinha visto rapidamente uma ou duas vezes e não tinha nenhuma outra associação com ele, alimentou todo tipo de teorias desvairadas que me ligavam aos ataques de 11 de Setembro. Os investigadores estavam afundando e buscavam qualquer palha para se agarrar, e eu, pessoalmente, não queria ser bem essa palha.

    ________ disse ________"________."

    "Nos próximos dias!"

    *

    NOTAS:

    1. Por "planície" creio que Mohamedou Ould Slahi (MOS) se referia à paisagem cubana em torno do campo. Do manuscrito transparece que MOS foi mantido em dois ou três blocos diferentes no Campo Delta durante os meses seguintes, inclusive um bloco onde ficavam detentos de países europeus e do norte da África.

    2. Como isso ocorreu durante o período no qual o FBI tinha controle total do interrogatório de MOS, provavelmente esta seria outra equipe de interroga- tório do FBI.

    3. Esse interrogador poderia ser da CIA. Em 2013, a Associated Press relatou que, entre 2002 e 2005, agentes da CIA em GTMO tentaram recrutar detentos para servir de informantes e agentes duplos para os Estados Unidos. A CIA também ajudou a facilitar interrogatórios em Guantánamo conduzidos por agentes de inteligência estrangeiros. Adam Goldman e Matt Apuzzo, "Penny Lane, Other Secret CIA Facility em GTMO", Associated Press, 26 nov. 2013.

    4. Provavelmente foi o "cavalheiro mais velho", ou um de seus outros interro- gadores do FBI.

    5. Ao que parece essas citações foram dirigidas a dois detentos diferentes. O "Turcomenistão" não censurado nesta passagem sugere que MOS podia estar se referindo aos interrogatórios de detentos da etnia uighur por agentes da inteligência chinesa em GTMO. Esses interrogatórios, que segundo relatos eram precedidos por períodos de privação de sono e de manipulação da temperatura, foram primeiramente revelados no relatório de maio de 2008 do inspetor-geral do Departamento de Justiça, "A Review of the FBI's Involvement in and Observations of Detainee Interrogations in Guantanamo Bay, Afghanistan, and Iraq". Jornais da companhia McClatchy relataram que os interrogatórios ocorreram durante um dia e meio em setembro de 2002. Disponível em mcclatchydc.com/2009/07/16/ 72000/uighur-detai nees-us"?helped-chine se.html.

    6. Provavelmente esses visitantes eram alemães. Em 2008, "Der Spiegel" relatou que, em setembro de 2002, dois membros do Bundesnachrichtendienst (BND) e um membro do Departamento de Proteção da Constituição, agências estrangeira e doméstica da inteligência alemã, entrevistaram MOS durante 90 minutos em Guantánamo. Tudo indica que MOS se refere a dois desses visitantes, um mais velho e outro mais moço. John Goetz, Marcel Rosenbach, Britta Sandberg e Holger Stark, "From Germany to Guantanamo: The Career of the Prisioner No. 760", Der Spiegel, 9 out. 2008.

    7. Provavelmente, "Herr Salahi". "Salahi" é uma variante de pronúncia do sobrenome de MOS geralmente usada em documentos de tribunais nos Estados Unidos.

    8. A primeira foto provavelmente era de Ramzi bin al-Shibh, que foi capturado em tiroteio num subúrbio de Karachi, Paquistão, em 2002, bem naquela data, 11 de setembro. Em sua audiência de 2005 à ARB (sigla para o nome em inglês da Junta de Revisão Administrativa), MOS contou ao comitê que, em "11 de setembro de 2002, os EUA prenderam um homem chamado Ramzi bin al-Shibh, que é tido como o homem-chave nos ataques de 11 de Setembro". "Foi exatamente um ano depois do 11 de Setembro, e desde sua captura minha vida mudou drasticamente."

    MOHAMEDOU OULD SLAHI, 44, engenheiro mauritano preso em Guantánamo desde 2002.

    DONALDSON M. GARSCHAGEN é editor e tradutor.

    PAULO GEIGER é editor e tradutor do inglês e do hebraico.

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