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    Arquivo Aberto - Marieta-mãe

    NEWTON MORENO

    07/06/2015 02h08

    São Paulo, 2005

    Quando assistiu à peça "Agreste" no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, Marieta Severo se aproximou de nosso grupo, o Razões Inversas, com delicada curiosidade. Investigava como quem desbrava arqueologicamente as pegadas que levaram até o espetáculo que tinha acabado de assistir.

    Eu fiquei deslumbrado ao ver o encantamento de descobertas nos olhos de uma dama dos nossos palcos. Alguém que aprendi a admirar como espectador enxergava no teatro que eu construía algo que a mobilizava.

    Não demorou e, no ano seguinte, ela e Andréa Beltrão nos levaram ao Rio para uma temporada. Foram madrinhas de nossa chegada em terras cariocas e, graças às duas, eu me inaugurava no teatro-ninho Poeira.

    Marieta sugeriu que eu escrevesse um projeto-de-peça, uma semente para um encontro cênico nosso. Não restringiu temas, queria que eu desse fluxo ao meu universo temático, não queria promover desvios no curso do rio em que me banhava, queria ver se poderíamos seguir juntos pelas mesmas águas.

    Muitas pistas acenderam as primeiras ideias.

    Acervo pessoal
    As atrizes Andréa Beltrão e Marieta Severo em "As Centenárias", no Teatro Poeira, em 2007
    As atrizes Andréa Beltrão e Marieta Severo em "As Centenárias", no Teatro Poeira, em 2007

    As carpideiras faziam parte da paisagem de personagens em "Agreste" e "Assombrações do Recife Velho" e foram se configurando como primeiras apostas.

    Já que as duas atrizes queriam uma dupla para exercitar seu "pas de deux" teatral, pensei: por que não dar o protagonismo a estas "encenadoras da morte"?

    Confiante na força performática de uma dupla clownesca à beira dos velórios, decidi que seria uma história sobre carpideiras.

    Mas um sinal estava plantado no meio da estrada. Assim como eu, Andréa e Marieta haviam folheado numa mesma revista um artigo sobre mulheres centenárias. Tratava-se de mulheres que atravessaram um século e testemunharam grandes transformações sociais. Mulheres com saber acumulado em anos de vida que puderam dar seu testemunho. As carpideiras, agora centenárias, começaram a se configurar, ganhando o centro da cena.

    Não satisfeito, quis saber mais da "comadragem" que unia Marieta e Andréa. Como foi cimentada aquela amizade? Em seus depoimentos percebi que as comadres tinham enfrentado muitas crises juntas, tinham morrido e renascido uma ao lado da outra. Aí formatei o que restava: então são carpideiras centenárias que vivem uma amizade mais forte que a morte.

    Ali começava nossa íntima relação com a Dona Morte e os infra-mundos fantásticos que ela escancarava para nós. Relação que segue até hoje na série "Amorteamo" e em outros textos engavetados. A morte como grande angústia, horizonte inegociável, mas a Morte em nossa história seria confrontada num duelo de mães e úteros com as nossas carpideiras, disputando um filho. O filho da Morte. Um berço-caixão estava no centro da cena. Tratava-se de um elogio à Grande Mãe.

    O mote era a vitória daquelas duas mulheres sobre a "dita cuja", uma potência de maternidade capaz de vencer a morte.

    Inicialmente, fui ouvindo como Andréa nutria um respeito de parceira, mestra, "marida" e mãe por Marieta e descascando da figura de grande artista que ela é a grande mãe em suas múltiplas nuances. Não deve ser à toa, por exemplo, que ela encarnou a matriarca da televisão brasileira durante 14 anos.

    Impressionou-me também descobrir que até seu tempo doloroso de exílio foi coroado com o nascimento de sua filha Silvia Buarque. Enfrentou este hiato de Brasil, gestando sua primeira filha em solo estrangeiro. E segui testemunhando como uma geração de atores, amigos de Silvia, a idolatram.

    Marieta agora completa 50 anos de carreira, sendo mãe de tantos.

    Mãe de muitos escritores a quem solicitou textos inéditos, reforçando sua vocação de parir novas crias teatrais. Ela se tornou um fomento para uma nova dramaturgia nacional, encomendando ou dando visibilidade a muitos textos. Assim, nestes 50 anos, Marieta ajudou o Brasil a se ver em cena. Seja um Brasil suburbano, periférico, sertanejo, trágico ou festivo.

    Marieta foi a mestre-mãe Socorro em "As Centenárias", sacramentando meu processo de adoção. Celebro esta data comemorativa de nossa querida Marieta agradecendo-a por ter me aceito entre sua vasta prole.

    NEWTON MORENO, 46, é ator, dramaturgo e diretor, um dos criadores do grupo "Os Fofos Encenam" e da série de televisão "Amorteamo".

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