• Ilustríssima

    Friday, 19-Apr-2024 14:46:26 -03

    Os pobres contra Piketty

    HERNANDO DE SOTO
    tradução CLARA ALLAIN

    07/06/2015 02h06

    RESUMO Economista peruano, fundador do Instituto pela Liberdade e Democracia, contesta teses de "O Capital no Século 21", de Thomas Piketty. Neste texto, ele sublinha os limites das estatísticas usadas pelo autor francês e diz que "as pessoas não rejeitam o capital e não o combatem -elas o procuram".

    *

    Com seu best-seller "O Capital no Século 21", Thomas Piketty chamou a atenção mundial: não porque ele combata a desigualdade –muitos o fazemos–, mas em razão de sua tese central, baseada em uma leitura dos séculos 19 e 20 que ele projeta sobre o século 21: o capital "acarreta mecanicamente desigualdades arbitrárias e insustentáveis" que levam o mundo à miséria, à violência e às guerras.

    Essa tese é falsa, como demonstram as pesquisas que realizei com minhas equipes. Nós fizemos algo que nem Thomas Piketty nem ninguém tinha realizado: estudar a miséria, a violência e as guerras do século 21. O que descobrimos contradiz "O Capital no Século 21": as pessoas não rejeitam o capital e não o combatem –elas o procuram.

    PRAÇA TAHRIR

    Na ausência de estatísticas mundiais confiáveis, o trabalho de Piketty é baseado nos dados oficiais dos países ricos; esses dados ignoram que 90% da população mundial vive em países em desenvolvimento ou em antigos Estados soviéticos, cujos habitantes em grande medida desenvolvem suas atividades econômicas e seu capital no setor informal, ou seja, fora das estatísticas oficiais.

    Foto Jorge Araújo/Folhapress

    O grande erro de análise de "O Capital no Século 21" consiste em extrapolar categorias sociais e indicadores estatísticos europeus, em aplicá-los aos países não ocidentais e em tirar deles conclusões mundiais e leis universais. Portanto, suas cifras não refletem o que acontece realmente no mundo.

    Essa falha tem consequências que ultrapassam de longe os aspectos meramente contáveis: a violência que explodiu na praça Tahrir, no Egito, em 2011, aconteceu em um país sobre o qual Piketty não dispunha de dados diretos. Um estudo em campo mostra que o capital exerce papel oculto mas determinante nos fatos, papel que a análise eurocêntrica não é capaz de perceber.

    A pedido do Ministério do Tesouro egípcio, minha instituição, o Instituto pela Liberdade e Democracia, fez uma pesquisa: 120 pesquisadores, em sua maioria egípcios, exploraram a documentação oficial e recolheram informações para um trabalho de observação em campo, de porta em porta, para confrontar as estatísticas oficiais –cuja confiabilidade era questionável– com a realidade. Descobrimos que 47% da receita anual do "trabalho" no Egito provém do capital: os trabalhadores egípcios ganham US$ 20 bilhões em salários, mas também US$ 18 bilhões adicionais graças aos rendimentos de seu capital informal.

    Nossas pesquisas mostraram que eles possuem perto de US$ 360 bilhões em bens imóveis; isso é oito vezes mais que o conjunto dos investimentos estrangeiros diretos no Egito desde a invasão napoleônica. Thomas Piketty não poderia ter descoberto isso unicamente pela análise dos dados oficiais.

    REVOLUÇÕES

    Piketty se preocupa com o risco de guerras futuras e sugere que elas vão assumir a forma de uma rebelião contra as desigualdades de capital. Talvez ele não tenha observado que as guerras do capital já começaram muito perto da Europa, no Oriente Médio e no norte da África. Se não tivesse deixado de tomar nota desses fatos, ele teria percebido que essas não foram rebeliões contra o capital, como ele afirma, mas pelo capital.

    A Primavera Árabe foi desencadeada pela imolação de Mohamed Bouazizi na ex-colônia francesa da Tunísia, em dezembro de 2010. Como as estatísticas oficiais e eurocêntricas classificam como "desempregadas" todas as pessoas que não trabalham para empresas formalmente reconhecidas, não surpreende que a maior parte dos observadores tenha se apressado a descrever Bouazizi como "trabalhador desempregado". Mas essa classificação ignorou o fato de que Bouazizi não era trabalhador, e sim empreendedor, desde os 12 anos, que aspirava sobretudo a ter mais capital ("ras el-mel", em árabe). Nosso sistema eurocêntrico de classificação nos impediu de ver que, na realidade, Bouazizi liderou uma espécie de "revolução industrial árabe".

    E não era apenas ele. Descobrimos depois que 63 outros empreendedores da região tentaram suicidar-se publicamente nos dois meses seguintes, inspirados pelo exemplo de Bouazizi. Eles levaram milhões de árabes às ruas, derrubando quatro governos. Em dois anos, entrevistamos cerca de metade das 37 pessoas que se imolaram e sobreviveram às queimaduras, assim como suas famílias. Todas foram levadas à tentativa de suicídio pela desapropriação do pouco capital que possuíam.

    Foto Jorge Araújo/Folhapress

    Cerca de 300 milhões de árabes vivem nas mesmas circunstâncias que os empreendedores que se imolaram.

    É preciso tirar quatro lições dessas pesquisas. Primeiramente, não é o capital que está na raiz da miséria e da violência, mas a ausência de capital. Em segundo lugar, para a maior parte do mundo não ocidental do século 21, o capital e a mão de obra não são inimigos: são facetas indissociáveis da geração de valor.

    Em terceiro lugar, as principais barreiras ao desenvolvimento das populações mais pobres têm sua origem na incapacidade delas de acumular e proteger seu capital. Em quarto lugar, o respeito pelo indivíduo e a coragem de exprimi-lo em alto e bom som não se limitam ao Ocidente. Bouazizi e aqueles que o imitaram são todos Charlie.

    CAPITAL FICTÍCIO

    Piketty tem razão quando escreve que a ausência de transparência está no cerne da crise que se arrasta desde 2008, mas se engana ao propor um "cadastro financeiro" que incluiria todos os capitais.

    Os bancos e mercados europeus estão abarrotados daquilo que Marx e Jefferson chamavam de capital "fictício", ou seja, papéis que não refletem mais nenhum valor real. Hoje, essa ilusão abrange bilhões de euros encaminhados de maneira obscura para produtos derivados, baseados em capitais não rastreáveis ou mal documentados que giram incansavelmente pelos mercados.

    Se o crescimento europeu está inanimado, é sobretudo porque ninguém mais sente confiança em todos esses papéis! Um "cadastro financeiro" não teria outra utilidade senão registrar as cifras destituídas de sentido do capital fictício. Para responder aos problemas identificados por Piketty, é preciso, pelo contrário, definir soluções que estejam ligadas aos fatos econômicos, que possam ser ligadas à sua realidade e que permitam separar o trigo capitalista do joio fictício. Para isso, é preciso que o vínculo que une capital a proprietário seja estabelecido em documento formal.

    É para isso que servem os títulos de propriedade, que conferem realidade prática a um conceito econômico. Ao contrário dos títulos financeiros, eles são concedidos com rigor, em registros regulamentados, acessíveis ao público, e contêm todas as informações disponíveis sobre a situação econômica de seus detentores e os bens aos quais remetem. Ninguém pode se permitir ser impreciso em relação ao montante de capital que possui.

    Como, então, materializar todo o capital a fim de localizá-lo, estabilizá-lo e controlá-lo? Os franceses forneceram a resposta mais apropriada com seu sistema de registro de títulos de propriedade, desenvolvido na época da Revolução Francesa para cobrir as lacunas das práticas anteriores. Sem conseguir acompanhar a expansão rápida dos mercados, essas práticas anteriores tinham enfraquecido a confiança dos cidadãos, que saíram às ruas para expressar sua frustração.

    Os reformadores tiveram então uma ideia de gênio, não procurando reformar o cadastro de um sistema ilegível e confuso, mas criando um sistema radicalmente novo de coleta de dados, certificando-se de que eles refletissem a realidade econômica. É esse caminho que precisa ser seguido novamente.

    Nas palavras do reformador francês Charles Coquelin (1802-52), a França conseguiu se modernizar quando, ao longo do século 19, aprendeu a registrar os títulos de propriedade de todos os ativos, de modo a "entender os milhares de elos que as empresas criaram entre elas e, desse modo, socializar e reconfigurar a produção de maneira móvel".

    Thomas Piketty tem o coração no lugar certo, mas seus papéis estão nos arquivos errados. O problema do Ocidente no século 21 é o dos papéis sem ativos; em todo o resto do mundo, é o dos ativos sem papéis.

    Como lidar com a miséria, as guerras e a violência numa época em que a maior parte dos registros do mundo deixou de representar aspectos cruciais da realidade? A história francesa é um bom ponto de partida.

    HERNANDO DE SOTO, 74, economista peruano, é autor de "O Mistério do Capital" (Record). O texto aqui publicado saiu originalmente na revista francesa "Le Point".

    CLARA ALLAIN é tradutora.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024