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    Ponto Crítico - Livro - Pele e estrutura

    RICARDO N. FABBRINI

    07/06/2015 02h02

    Pensando a cidade como síntese das artes, segundo o imaginário funcionalista, Le Corbusier prescrevia no tópico 92 da "Carta de Atenas", em 1941: "A arquitetura é a chave de tudo". Em "O Complexo Arte-Arquitetura", publicado originalmente em 2011, Hal Foster examina uma nova configuração assumida pela relação entre arte e arquitetura –denominada pelo autor de "estilo global"– a partir da construção do Centro Georges Pompidou, em Paris, de Richard Rogers e Renzo Piano, em 1977.

    O termo "complexo" do título designa as várias combinações entre arte e arquitetura surgidas desde então, como a fundada no desejo amoroso e hostil que levou a arquitetura, em alguns novos museus, a usurpar o lugar da arte. Essa expressão que remete à de "complexo militar-industrial", também permite diagnosticar a subordinação do cultural ao econômico, ou seja, a ideia de que a nova centralidade da cultura é econômica e a velha centralidade da economia é cultural, o que hoje é dado como natural.

    O autor analisa, combinando marxismo e psicanálise, o caráter "narcisista" de certa "arquitetura icônica", como a de Norman Foster ou Frank Gehry.

    Situando-se entre a crítica cultural e a crítica de arte e arquitetura, Foster estabelece relações entre o estilo global, próprio do capitalismo pós-industrial, e a arte vanguardista do período fordista. Localiza "dobras cubistas" em edifícios de Rem Koolhaas, "vetores futuristas" e distorções expressionistas em projetos de Zaha Hadid e uma mescla agressiva de futurismo e imagética pop em Renzo Piano e Richard Rogers, já entrevista nos grupos Archigram, e, em chave distópica, no Superstúdio, nos anos 1960 e 1970.

    Divulgação
    O Centro Georges-Pompidou, em Paris
    O Centro Georges-Pompidou, em Paris

    A principal contribuição de Foster, todavia, reside na relação singular que propõe entre a arquitetura contemporânea e o minimalismo nas artes. Recuperando o debate sobre a fruição de uma obra minimal, o autor mostra que, face aos objetos de Donald Judd ou Dan Flavin, o fruidor desloca-se incessantemente da "forma objetivada" às suas "configurações sensíveis", e vice-versa (o que não ocorreria nas instalações "imersivas", "tecnossublimes light", dos minimalistas James Turrell e Robert Irwin, nas quais vigora "abuso sensorial").

    Esse entrelaçamento de "literalidade" e "efeito fenomênico", de materialidade e imaterialidade foi preservado, no entanto, apenas excepcionalmente, segundo Foster, em certas obras de Herzog & de Meuron, Kazuo Sejima e Richard Gluckman, nas quais teríamos, de modo análogo, uma dialética entre a tectônica (o literal, ou estrutura) e a pele (a imagem, ou superfície).

    Essa dialética raramente é mantida porque, no estilo global dos "starchitects", o "fenomênico" predomina sobre o "literal". É o que se evidenciaria, por exemplo, na Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, de Jean Nouvel, em Paris, de 1994: aqui, a caixa de vidro não opera como transparência literal ou clareza estrutural, mas como envoltório que sobrepuja, senão "humilha", a estrutura.

    No edifício, a paliçada de vidro faz com que o literal se torne rarefeito, e o fenomênico se intensifique como brilho, ou se esvaeça como bruma, segundo a hora do dia. Essa arquitetura visaria produzir atmosferas, "deslumbrando" o observador, como se o seu modelo ideal fosse uma "joia iluminada".

    A luz, aqui, não figuraria progresso tecnológico, transparência democrática, ou transcendência utópica, no sentido modernista, pois seria tão somente meio para a espetacularização da forma: essa arquitetura cenográfica seria objeto presunçoso, um "fetiche forma-mercadoria em grande escala", frisa Foster, via Guy Debord.

    É na análise da trajetória de Richard Serra e na entrevista com o artista que encerra o livro que o autor exemplifica sua concepção de "fruição". Foster mostra como a megaescultura de Serra "The Matter of Time", no Museu Guggenheim de Bilbao, projeto de Frank Gehry, possibilita ao fruidor uma experiência de tempo e lugar perceptiva e cognitiva. Sua escultura promoveria uma relação direta com o "corpo do fruidor", alterando sua percepção de peso, escala, ou duração, à medida que ele escolhe, entre as alternativas abertas pelas placas autoportantes, que direção tomar. Cada novo passo no interior dessas elipses em torção e espirais de aço criaria um novo "lugar", outra escultura.

    A insistência de Hal Foster na evidência do material e da estrutura –índices da velha ordem industrial– opera como resistência à atrofia generalizada do tectônico, bem como ao triunfo da pele, ou da imagem edulcorada, na arquitetura do projeto digital, autogerado por softwares de alta tecnologia, cegos à presença do fruidor.

    Esse livro, de prosa clara e urdidura rara, constitui-se como referência obrigatória para a reflexão crítica sobre as práticas cruzadas da arte e arquitetura contemporâneas.

    Leia entrevista com Hal Foster.

    RICARDO N. FABBRINI, 53, é professor de estética no departamento de filosofia da USP e autor de "O Espaço de Lygia Clark" (Atlas) e "A Arte depois das Vanguardas" (Editora da Unicamp).

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