• Ilustríssima

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    Leia trecho do livro "Ariana", de Igor Gielow

    IGOR GIELOW
    ilustração ADAMS CARVALHO

    14/06/2015 02h08

    SOBRE O TEXTO O fragmento aqui publicado é parte do primeiro romance do jornalista Igor Gielow. O livro sai pela editora Record no dia 22.

    *

    Três anos antes, quando Waqar descobriu o caderno rosado nos escombros de Muzaffarabad, dois sentimentos afloraram no jovem paquistanês. Primeiro, sabia de forma instintiva que lá haveria alguma história a ser contada, pois diários adolescentes, e era isso que aquele objeto parecia ser, são depositários de segredos. E contar algo assim no meio de uma tragédia internacional poderia garantir alguns trocados a mais das sedentas publicações europeias, sempre dispostas a aliviar sua culpa colonialista com alguma "história humana", como gostam de chamar.

    É uma ironia histórica que os principais fornecedores dessas pequenas pílulas contra o mal-estar das antigas metrópoles sejam normalmente jornalistas e "fixers" nativos*. Ao menos agora eles são pagos, embora não se deva ignorar o fato de que alimentam o processo com mesquinharia e ganância dignas de qualquer rei Leopoldo. Afinal de contas, o que lhes interessa no fim do dia são as notas de cem dólares, pouco importando se isso vai colocar óleo numa engrenagem perversa. A roda move boa parte da imprensa liberal europeia, a britânica em particular. Uma infinidade de apelos contra a fome na África, convênios com organizações não governamentais que fazem proselitismo em locais como o Paquistão, toda sorte de enganação para o leitor.

    Adams Carvalho

    Quando encontrou Mark na cobertura do terremoto, alguns dias depois, tiveram essa conversa. Ao brasileiro desterrado impressionava tanto a disposição dos nativos de ganhar dinheiro com a própria tragédia quanto toda essa manipulação por parte dos meios de comunicação ocidentais. Certa vez tivera longa discussão com um correspondente britânico, que defendia ardorosamente a tese de que seus conterrâneos tinham um grau de consciência social superior. Por isso, sustentava, era tão comum o apoio a essas campanhas –não havia jornal inglês que não trouxesse de vez em quando uma propaganda de alguma "instituição de caridade" com a foto de algum africano esquálido e platitudes do tipo "Você pode salvá-lo da fome com apenas um clique".

    Para Mark, o comentário era de uma ingenuidade quase criminosa, e, quando introduziu o tema na conversa com Waqar, assombrou-se com a reação do amigo paquistanês. "Lógico que os ingleses são superiores. Se fôssemos nós os melhores, todas as mulheres em Londres usariam véu e eles falariam urdu", disse, sem se dar conta da piada involuntária por cortesia da nova demografia britânica –não viveria, afinal, para vê-la ao vivo. E, de todo modo, comprovava a tese crescente entre historiadores liberais –no sentido britânico, conservadores do outro lado do Atlântico– de que o império não fora tão ruim. Como conta qualquer taxista em Peshawar, as únicas edificações em estado decente da cidade são as legadas pelos antigos chefes coloniais.

    Naquele começo de noite em Muzaffarabad, Waqar, contudo, foi invadido por um segundo sentimento, decorrente do primeiro. "Se é segredo, por que vou expor isso? Deve ser algum tipo de pecado, é errado. E se quem escreveu aqui for esse garoto morto?", pensou. A crise de consciência durou uns cinco minutos, e ele achou por bem tomar a decisão mais tarde, quando estivesse descansado e tivesse conseguido tomar um banho. Como isso só veio a ocorrer dois dias depois, já de volta à capital por ordens de seu jornal, Waqar não teve a oportunidade de procurar por Ariana num primeiro momento.

    Sim, Ariana era a autora das linhas escritas no caderno. Muito estranhamente, em inglês. Imbuído da misoginia que permeia as relações sociais no Paquistão, Waqar se sentiu menos constrangido de ler o diário. Fora o autor do texto aquele rapaz morto na ruína, além do eventual desconforto por ter literalmente visto o corpo sobre o qual faria sua rapinagem, o jornalista quase certamente sentiria estar participando de uma traição de classe. Mulheres são seres de segunda categoria na maior parte das regiões tribais paquistanesas, e são sujeitas a tribunais exclusivos para crimes contra a honra de seus maridos. De tempos em tempos, ONGs feministas ganham destaque na imprensa clamando contra os horrores daquelas práticas, mas, na maioria dos casos, desaparecerem da região assim que o fluxo de doações de governos e incautos aumenta.

    Há obviamente uma grande incompreensão, no Ocidente, dos meandros dessas relações. Entre a grande nação de clãs tribais dos pachtos, por exemplo, são as mulheres que fazem uma série de escolhas na organização da família; a mais surpreendente delas, talvez, seja a escolha do marido para a filha, poder que só é retirado da matriarca no caso de o casamento envolver alguma negociação política muito importante –os noivos, exceto quando a mulher é viúva ou o homem é o patriarca da casa, têm baixo poder de decisão.

    Mas o avanço dos zelotes fundamentalistas na vida tribal tem distorcido esses filigranas em favor da visão mais conhecida, de uma brutalidade absurda contra a mulher –que, no fim, é a que prevalece de qualquer forma. Nas grandes cidades, o processo é menos explícito, mas nem por isso imperceptível, e iniciativas genuínas de melhorar a inclusão das paquistanesas acabam ficando sob a poeira que cobre tudo no país.

    As letras no papel eram firmes, escritas com caneta azul, exceto por um trecho ou outro registrado a lápis, o que indicava uma sobriedade típica das famílias do interior do Paquistão. Muzaffarabad era uma cidade relativamente desenvolvida, centro regional, mas ainda assim muito mais próxima dos tribalismos que a moderna Islamabad, a mais cosmopolita Lahore e a caótica Karachi.

    "I'm Ariana", começava o texto em inglês. Waqar se questionava o motivo e o que aquilo significava. Mesmo que viesse de uma família tradicional, era evidente que a menina tivera acesso ao inglês da escola pública, o que indica um nível superior no estrato social. Nas áreas tribais puras, a educação feminina é praticamente nula. Ela poderia também estar evitando olhos mais curiosos de empregados e parentes que não dominassem a língua estrangeira; essa era uma boa hipótese. E Ariana devia ser um pseudônimo. Não há meninas com esse nome no país, mas a referência aos grandes povos da Ásia Central que fundaram impérios e civilizações poderia indicar a etnia pachto da autora. Entre os pachtos do Afeganistão e do Paquistão há um certo culto a essa memória –pululam empreendimentos com o nome, de redes de lojas à empresa aérea nacional afegã e a um cinema central de Cabul. Mas a história que começava a se descortinar era bem menos épica.

    Ariana contava, em inglês simples, mas correto, ter 15 anos e estar com o casamento arranjado para o fim do ano. Ela não conhecia o noivo. Só sabia que se tratava de um mujahid, um guerreiro santo que havia lutado no Afeganistão contra os americanos e que, sendo originário da Caxemira, queria voltar para sua terra até que sentisse um novo chamado divino para o combate. Talvez estivesse fugindo de algo ou de alguém. Só que o mujahid tinha dinheiro para pagar o dote de Ariana, um valor que ela nunca cita em seu texto, e isso parece ter encantado o Pai, descrito assim, com maiúscula. Sobre a Mãe não há uma palavra, indicando uma possível orfandade ou uma tentativa de proteção instintiva. Provavelmente a primeira, visto que, em tese, seria a mãe a pessoa a negociar com o mujahid o preço do casamento.

    Mas há, e não poucas, referências a Iqbal, relatado no caderno como um garoto bonito e forte. Filho de um vizinho de sua família, ele é seu amor secreto. A menina conta que Iqbal trabalha com o pai, como tantos jovens daquela região, numa pequena loja de tecidos. O texto sugere que eles têm idades compatíveis, já que ela diz conhecê-lo desde pequeno.

    Ariana
    Igor Gielow
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    A pieguice do relato que corria à frente de seus olhos comoveu Waqar, ao menos o suficiente para demovê-lo de fazer qualquer uso jornalístico daquele material. Mas havia algo mais. O que havia escrito lá se transformou num segredo mortal para ele. Jamais contara a ninguém o que lera no diário, guardado de forma cuidadosa. Às vezes se pegava fantasiando alguma das partes mais sensuais, ou aventurosas, mas decidira que Ariana era um mistério que levaria para o túmulo. Havia lá mais do que apenas o devaneio de uma menina sob a opressão da família e da sociedade.

    *Neste contexto, o termo designa um assistente de jornalista estrangeiro numa cobertura internacional.

    IGOR GIELOW, 41, é diretor da Sucursal de Brasília da Folha.

    ADAMS CARVALHO, 36, é ilustrador.

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