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    Diário de Beirute - Da Síria para o cinema

    DIOGO BERCITO

    14/06/2015 02h07

    Mãos agarram peixes vivos e, com facas de cozinha, estraçalham sua carne. Depois, sem muito interesse, costuram pedaços de uns nos outros, devolvendo, por fim, os animaizinhos ao tanque de água. A violência do curta-metragem resume a atmosfera política na capital do Líbano. Sua vizinha Síria enfrenta, desde março de 2011, um violento conflito civil. Mais de 1 milhão de refugiados cruzou a fronteira.

    Um deles, Abdullah Alkafri, organizou a mostra de filmes, realizada em um centro cultural francês de Beirute. Os curtas são resultado de um projeto de Alkafri para fomentar e financiar a produção de cineastas sírios e palestinos na região. O peixe-frankenstein dá lugar, em outros curtas, a um jihadista bailarino, a um pianista em um campo de refugiados cercado pelo Exército ["Blue", de Abo Ghabi] e a uma garota que sobrevive a um ataque químico na Síria ("estou viva, estou viva, estou viva", ela sussurra) ["I Am Alive!", de Abdalla Omari].

    Ao final da exibição, a plateia deixa escapar o ar que estava prendendo havia uma hora. "Alguma pergunta?", Alkafri indaga, tímido. Diante do silêncio atônito dos espectadores, ele encerra o evento.

    Assista a "Blue" e a "I Am Alive!" abaixo.

    TEIA DE ARANHA

    Não existe endereço em Beirute. Até existe, mas são em geral pistas falsas, armadilhas do gênio da lâmpada. Os logradouros dos mapas não coincidem com aqueles do mundo físico e, ademais, as indicações são sempre dadas em relação a pontos de referência, e nunca como "rua, número". Tenho que ir, em um dia, a um escritório "atrás do hotel Phoenicia", "na mesma calçada do Bloombank", "antes do McDonald's". Deslocar-se parece um jogo de caça ao tesouro. Só que sem tesouro.

    O sistema aracnídeo complementa-se pela estrutura informal de lotações, sem pontos de ônibus ou linhas fixas. Para não perder tempo, os motoristas fecham as portas deslizantes dando um toquinho no freio, contando com a inércia para o movimento. Pof!

    TEMPORADA DE AMEIXA

    Um de meus maiores arrependimentos, em Beirute, é não ter comido "janerik" o suficiente. É uma sensação semelhante à de chegar ao fim de um relacionamento sem ter amado o bastante. Essa iguaria –uma ameixa colhida antes de amadurecer– costuma ser encontrada apenas em torno do mês de maio. Um quilo é vendido por cerca de R$ 5, dependendo da qualidade e do azedume. Nos carrinhos de mão estacionados nas rotatórias, as bolinhas verdes desaparecem rapidamente.

    O "janerik", tradicional também na Turquia e na Síria, é comido com sal para disfarçar o gosto azedo da fruta. Dizem as mães e as avós que seu excesso provoca diarreia, mas a suspeita, entre adultos, é de que o conto foi inventado para impedir crianças de comer toda a safra em um dia só.

    DISQUE "N" PARA NARGUILÉ

    Não faltam na cidade bares para fumar narguilé. Nos bairros mais em voga, como Hamra e Badaro, as ruas estão sempre apinhadas de consumidores –em geral, homens– com o tal cachimbo de água na boca. Os sabores clássicos são maçã e uva com hortelã. Mas não é preciso sair de casa para se intoxicar com essa engenhoca.

    Um breve telefonema para um sistema de delivery garante o narguilé em casa por menos de R$ 5. O produto vem na garupa de uma motocicleta. No final da fumatina, basta deixar o cachimbo na porta de casa, de onde ele será recolhido por um funcionário invisível. Só fica faltando o aviso: um estudo da Organização Mundial da Saúde estima que uma hora de narguilé equivale a fumar entre 100 e 200 cigarros.

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    DIOGO BERCITO, 27, é jornalista e assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site da Folha.

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