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    Alice no país da esquerda

    ARIEL DORFMAN
    tradução FRANCESCA ANGIOLILLO

    14/06/2015 02h05

    RESUMO No 150º aniversário de "Alice no País das Maravilhas", escritor chileno reflete sobre ensinamentos que obra de Lewis Carroll (1832-98), contemporânea de "O Capital", poderia ter fornecido aos movimentos de esquerda. Para o autor de "A Morte e a Donzela", principal deles é o convite à insubmissão e à esperança.

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    Não muito longe de onde pela primeira vez foi publicado "Alice no País das Maravilhas", em julho de 1865, e pouco após a aparição do livro, uma jovenzinha o lia avidamente, sentada aos pés do pai, enquanto ele burilava, em seu estúdio londrino, um manuscrito de ordem totalmente diferente, uma análise que mudaria o mundo.

    A menina se chamava Eleanor, embora todos na família a chamassem Tussy. Seu pai era Karl Marx e escrevia "O Capital" sob circunstâncias desfavoráveis: perpetuamente endividado, com uma fila de credores açoitando sua porta, vivendo "unicamente graças à casa de penhores", como confessa a Friedrich Engels, em uma carta de fins de julho desse mesmo ano.

    Considerando que Marx amava muito sua pequena Eleanor ("Tussy sou eu", anunciou em certa ocasião), não seria de estranhar que o inspirador da maioria das grandes revoluções nos 150 anos seguintes também tivesse lido o clássico infantil que tanto encantou sua filha.

    Quanto aos homens e mulheres que comandaram e que, muitas vezes, sofreram naqueles transtornos, é provável que muitos deles tenham se deliciado com "Alice", um livro extraordinariamente popular –entre os leitores de língua inglesa, diz-se, só seria superado pela Bíblia e por Shakespeare.

    É uma pena, portanto, que revolucionários e reformadores do século e meio que se seguiu tenham ignorado as lições escondidas no texto de Carroll, lições que poderiam ter sido úteis na busca por paz, justiça e liberdade; intuições e achados literários que teriam ajudado a evitar tantas armadilhas, erros e derrotas; uma pena que tenham deixado de notar os avisos de que não havia que aceitar convites a chás malucos, Mad Tea Parties, que os levariam ao inferno, e não ao prometido paraíso.

    Eu havia lido o livro de Carroll várias vezes –quando criança; depois, para meus filhos; e, mais recentemente, com minha mulher, Angélica, simplesmente a fim de rir com seu humor caótico. Mas voltar a descer pela toca do coelho adotando a perspectiva de 150 anos de lutas por um mundo melhor foi surpreendentemente revelador e, muitas vezes, angustiante.

    Deparei com uma abundância de frases e situações que ecoavam minha própria experiência de compromisso e ativismo progressista ao longo das últimas cinco décadas.

    Não tinha eu empenhado, ao lado de companheiros, horas sem fim a pintar de vermelho rosas brancas, como os jardineiros da Rainha de Copas? Não havíamos exclamado uma e outra vez, aos que queriam se sentar à nossa mesa, "não tem mais lugar! Não tem mais lugar!", quando, na verdade, tinha lugar de sobra? E não nos pareceria familiar a seguinte cena: "Os jogadores jogavam todos ao mesmo tempo, sem esperar pela sua vez, discutindo sem parar"?

    Recordando reuniões intermináveis com militantes de organizações e facções de esquerda que, como o Rato, se ofendiam "tão facilmente"; tendo discutido de forma ardente tantos detalhes minúsculos e rarefeitos quanto teorias abstrusas e retorcidas, não posso me fazer de desentendido diante da observação de Alice, diante de uma resposta do Chapeleiro, que "não fazia sentido nenhum para ela, embora a linguagem que ele tinha usado fosse perfeitamente correta". Da mesma forma, me identifico com ela quando murmura "para si mesma": "É uma coisa terrível [...] o modo como essas criaturas discutem com a gente. É de fazer qualquer um louco!"

    Por isso, pediria que não assumam ares de superioridade aqueles que, como eu, reconhecem nessas referências suas desventuras pessoais no País das Palavras de Ordem. O próprio Lewis Carroll nos recorda que todos temos nosso quinhão de responsabilidade.

    Quando Alice, sempre cortês e razoável, pretende –da mesma forma como muitos de seus leitores– ver-se acima do delírio que a circunda, o Gato Inglês não encontra dificuldade para provar que ela é tão lunática quanto os demais: "Bem, deve ser", diz o irrefutável felino, "ou então você não teria vindo parar aqui".

    Divulgação
    Ilustração de Luiz Zerbini para edição da Cosac Naify do clássico de Lewis Carroll; tradução de Nicolau Sevcenko está em caixa comemorativa que contém também "Através do Espelho", com tradução de Alexandre Barbosa de Souza e ilustrações de Rosângela Rennó (R$ 139,90)
    Ilustração de Luiz Zerbini para edição da Cosac Naify do clássico de Lewis Carroll; tradução de Nicolau Sevcenko está em caixa comemorativa que contém também "Através do Espelho", com tradução de Alexandre Barbosa de Souza e ilustrações de Rosângela Rennó (R$ 139,90)

    Às vezes essa loucura generalizada se manifesta sob a forma de disparates e bobagens inocentes mas também encarna na forma insistente de um pesadelo que envenena o País das Maravilhas.

    "Primeiro a sentença", ordena a Rainha de Copas, evocando os piores traços de Stálin ou Mao, "depois o veredicto!". Espancamentos, julgamentos simulados, ameaças de execução iminentes, maus-tratos aos empregados e, sobretudo, decapitações em massa para os que cometem o mínimo erro: "Eles estão sempre terrivelmente dispostos a cortar a cabeça das pessoas por aqui", observa Alice. "O que me espanta é que ainda tenha sobrado alguém vivo!"

    Soa como se Lewis Carroll estivesse, sem notar, prevenindo seus fãs sobre os perigos das ditaduras vindouras, fossem as regidas pelos revolucionários do século 20, fossem as de regimes em resgate do capitalismo e de seus privilégios.

    Justificados pela urgência de atender a necessidades inadiáveis, pela certeza de que não há "um momento a perder", nós, os esquerdistas, vez e outra nos encontramos descendo pela toca mais próxima, "sem jamais considerar" como fazer " depois para sair dali".

    SAÍDA

    A dada altura, Alice pergunta ao Gato Inglês como sair dali. E ouve de volta que "isso depende muito de para onde você pretende ir".Cabe perguntar, então, aonde quero chegar com essa meditação sobre Alice e suas aventuras hipotéticas no País das Esquerdas. É justo fazer de um livro tão vivo e ligeiro uma crítica agourenta de projetos e métodos insurgentes?

    Ao imitar de forma deprimente a lúgubre Lebre Aloprada, selecionando só queixumes para provar o aspecto contemporâneo de "Alice", não estarei desprezando o que é essencial, duradouro, engraçado e emancipador na narrativa e nos personagens de Carroll?

    Pois "Alice no País das Maravilhas" também pode ser lido como um texto insubordinado, do qual transbordam impulsos utopistas.

    Por que não enfatizar a convicção que demonstra Alice de que "muito pouca coisa era realmente impossível", um credo que alimentou o fogo de tantas cruzadas sociais, como evidenciam recentemente a luta pelos direitos dos homossexuais e a onda de iniciativas e propostas ecológicas?

    Por que não escrever com letras garrafais as palavras do Chapeleiro, quando Alice tenta explicar que, como não tomou nada, não pode tomar um pouco mais: "É sempre mais fácil tomar mais que não tomar nada" –uma fala que, hoje, poderia ser arremessada como um projétil contra executivos de empresas que amealham soldos milionários ao passo que recusam subir o salário dos funcionários.

    O livro celebra a rebelião e a desobediência (a cozinheira lança panelas contra a Duquesa, a Duquesa ataca a Rainha, o Valete de Copas rouba as tortas, Alice se recusa a cooperar, os porquinhos-da-índia aplaudem mesmo se são sufocados), enquanto figuras despóticas são ridicularizadas em sua ineficácia e incompetência.

    O que há que resgatar, acima de tudo, de "Alice no País das Maravilhas", é seu humor subversivo e inquieto, o mesmo questionamento fundamental da autoridade que alimentou a insurreição, a resistência e a dissidência de milhões ao longo dos últimos 150 anos, o fato de imaginar que uma realidade paralela possível não obedece às regras de uma sociedade que carece de transformações profundas.

    É essa energia carnavalesca, essa atitude eminentemente brincalhona que temos que reconhecer e abraçar como uma parte crucial de nossa identidade progressista.

    SOLENIDADE

    Existe na esquerda, no entanto, a tendência a usar linguagem e estilo em tudo opostos a ela: uma solenidade pesada e ponderada, como se sobre nossos ombros levássemos todas as tragédias do mundo. Consideramos, com razão, que esses são assuntos sérios –e, como tal, requerem discurso também sério.

    O sofrimento é imenso, a injustiça, intolerável, a estupidez, ilimitada, o planeta está à beira do apocalipse, as depredações causadas por corporações armamentistas e aparatos de vigilância contra a cidadania se expandem em direção a um futuro sombrio e distópico.

    Mais motivo ainda, então, para exaltar nossa própria liberdade sempre que possível, para aproveitar os momentos em que se rompem as convenções e se interrogam nossos supostos básicos.

    Mais motivo ainda para reconhecer o encanto que renasce em cada pequeno gesto de esperança e solidariedade, para enaltecer a alegria sem adornos que vem de sabermos que não temos por que deixar o mundo da mesma forma como o encontramos.

    ENERGIA

    Durante a revolução chilena (1970-73), o povo do meu país marchou, incansável, participando de manifestações sem conta em defesa do governo democrático de Salvador Allende. A energia desses irmãos e irmãs, sua flexibilidade, sua força, seu engenho irrefreável me moveram e motivaram ao longo de toda a vida.

    O que também levo comigo é a lembrança de que esses homens e mulheres nas ruas de Santiago eram muito mais vibrantes e criativos que aqueles homens –quase todos eram homens– que, sobre um palanque, faziam por horas a fio exortações, jurando que as massas eram invencíveis.

    Eu me perguntei então, como me pergunto hoje, por que o entusiasmo e o desafio dessas multidões democráticas não se difundiram de forma mais atrevida por toda a sociedade, por que há tal contraste entre líderes e povo?

    E me dói que nossa revolução pacífica tenha terminado em cataclismo, com Allende morto e tantos torturados, perseguidos, exilados, tantos sonhos que chegaram ao fim, ou pareciam ter chegado.

    Em "Alice", o Rei ensina ao Coelho Branco, em tom grave e lógico, a forma de contar uma história: "Comece pelo começo [...] Continue depois até chegar ao fim e então pare". Mas ele está errado.

    Nós, que desejamos um mundo diferente, sabemos que não devemos parar quando chegamos ao fim; sabemos que não há fim possível para o desejo de justiça, que os rebeldes nunca "desaparecem totalmente, como uma vela".

    Somos, ao contrário, como o Gato Inglês. Ainda que seu corpo tenha desvanecido, seu sorriso permanecerá, obstinado, como uma presença fantasmagórica, como prova de que um dia ocupamos um espaço de rebeldia e é perfeitamente possível que voltemos. Com efeito, mesmo que não possamos continuar, como compreendeu Samuel Beckett, herdeiro de Carroll, teremos, no entanto, que seguir.

    Para aqueles que, como nós, ainda acreditam que mudanças decisivas são a única resposta possível para a avareza de nossa época autodestrutiva, eis o que devemos aprender e celebrar em "Alice no País das Maravilhas"; eis aquilo de que precisaremos nos próximos 150 anos, em nossa luta; eis o desafio que nos proporciona esse texto tão fantástico quanto absurdo.

    Depois de tanto trabalho –as atribulações a que sobrevivemos e as que nos esperam– teremos coragem para continuar aceitando o convite da Falsa Tartaruga, que a cantar, convoca: "Sai da concha e mostra toda tua garra".

    Nota: Os trechos da obra de Carroll são citados aqui seguindo a tradução de Nicolau Sevcenko para a Cosac Naify.

    ARIEL DORFMAN, 73, é escritor e dramaturgo chileno radicado nos EUA, professor honorário de estudos literários na Universidade Duke e autor de, entre outros, "Terapia-Avareza" (Objetiva).

    FRANCESCA ANGIOLILLO, 42, é editora-adjunta da "Ilustríssima".

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