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    Obra de Paulo Emílio Sales Gomes volta à cena com nova organização

    AMIR LABAKI

    21/06/2015 02h01

    RESUMO Coletânea de ensaios que dá início a projeto de reedição da obra completa de Paulo Emílio Sales Gomes permite ver com mais clareza a linha crítica do pensador, cineasta e professor. "O Cinema no Século", com curadoria de Carlos Augusto Calil, reúne textos do autor publicados em jornais e revistas de 1941 a 1970.

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    Todo início de texto ou declaração com vistas a apresentar Paulo Emílio Sales Gomes denuncia a tensão inerente à necessária síntese numa única frase de uma personalidade múltipla e cativante. É assim mesmo com seus contemporâneos e amigos próximos, como o crítico literário Antonio Candido, 96, e o crítico teatral Décio de Almeida Prado (1917-2000).

    Para Candido, Paulo Emílio "foi, antes de mais nada, uma personagem luminosa, e o que fez em diversos setores traz a marca renovadora e a disposição de criar". Décio, por sua vez, escreveu que ele "foi, sucessivamente, o mais internacional e o mais nacional de nossos homens de cinema".

    O desafio se apresenta novamente, agora a seu discípulo e, em muitos sentidos, continuador Carlos Augusto Calil, no prefácio da antologia "O Cinema no Século" [Companhia das Letras, R$ 54,90, 616 págs.; R$ 37,90, e-book], volume que inaugura o relançamento da obra completa de Paulo Emílio.

    Lygia Fagundes Telles/Reprodução
    Paulo Emílio Sales Gomes com sua mãe, Gilda, nos anos 1950
    Paulo Emílio Sales Gomes com sua mãe, Gilda, nos anos 1950

    "Precoce militante político, historiador, crítico, fundador da Cinemateca Brasileira, professor, Paulo Emílio Sales Gomes (1916-77) foi escritor de vocação, conforme se depreende da imediata consagração que recebeu seu único texto de ficção, 'Três Mulheres de Três PPPs', lançado poucos meses antes da morte inesperada", resume Calil no parágrafo de abertura de "A Crítica como Aventura".

    Num fôlego só, alinhava com elegância seis atividades, deixando de fora apenas uma, pontual, mas de duradouro impacto –a participação fundamental de seu mestre na fundação, em 1965, do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais longevo entre nós.

    Curador experimentado da reedição das obras de Paulo Prado (1869-1943) e Glauber Rocha (1939-81), ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo, Calil retoma agora em nova casa o projeto de relançamento dos escritos de Paulo Emílio, que iniciara e infelizmente vira interrompido na Cosac Naify. Nada mais oportuno, às vésperas do centenário do crítico, a ser comemorado em dezembro do próximo ano.

    Segundo adianta Calil à "Ilustríssima", além de "Três Mulheres de Três PPPs", com posfácio inédito de José Pasta, e "O Cinema no Século", que abrem a nova coleção, virão "Revolução, Cinema e Amor", "Uma Situação Colonial?", "Arte Impura", "Perplexidades Brasileiras" e a reedição de "Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte" –"no ritmo de dois por ano, segundo a Companhia das Letras", diz o organizador.

    "Uma nova abordagem, com recortes mais nítidos", explica ele no prefácio, "pode facilitar o encontro do leitor com um autor que, servindo-se de uma linguagem sedutora, adota certa postura pedagógica sem simplificar a exposição". "O Cinema no Século" cumpre com louvor a proposta assim anunciada, propiciando aos leitores da nova geração uma navegação mais bem ordenada pelo piscoso mar de textos redigidos em mais de três décadas por Paulo Emílio.

    Com a morte súbita e precoce, aos 60 anos, em 1977, já num momento de desaceleração da atividade ensaística em favor de sua atuação pioneira e febril à frente da Cinemateca Brasileira e como professor acadêmico de cinema (na Universidade de Brasília e na ECA-USP), o crítico paulistano não teve tempo de transformar em livros o essencial de sua produção jornalística e ensaística.

    Em vida, Paulo Emílio pôde saborear o lançamento de apenas dois volumes críticos autônomos, um deles só na França –sua biografia inaugural do cineasta francês Jean Vigo (1905-34), publicada com retumbante sucesso pela Seuil na Paris de 1957. O segundo foi "Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte" (Perspectiva, 1972), que resultou de sua tese de doutoramento, orientada por Gilda de Mello e Souza (1919-2005), no departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

    ESFORÇO

    Nos anos 1980, na meia década seguinte a sua morte, um esforço editorial concentrado na editora Paz & Terra enfrentou essa dívida bibliográfica.

    Primeiro veio à luz a reunião de três de seus ensaios essenciais sobre o cinema nacional ("Pequeno Cinema Antigo"; "Panorama do Cinema Brasileiro: 1896/1966"; e "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento"), emprestando o título do último texto.

    No ano seguinte, saíram os dois volumes da "Crítica de Cinema no 'Suplemento Literário'", tijolaços com cerca de 500 páginas cada um, compilados por Zulmira Ribeiro Tavares com o total de 203 colunas publicadas por Paulo Emílio no semanário cultural de "O Estado de S. Paulo" entre 1956 e 1965.

    Por fim, com mais de um quarto de século de atraso, a Paz & Terra lançava em 1984 a primeira edição brasileira do já então clássico "Jean Vigo", em tradução de Elizabeth Teixeira.

    Esse primeiro período de publicação da escrita fragmentada de Paulo Emílio encerrou-se, de certa forma, em 1986, com a organização, já por Carlos Augusto Calil, ao lado de Maria Tereza Machado, de 64 textos dispersos de sua produção crítica, mas também da militante, em "Paulo Emílio: Um Intelectual na Linha de Frente" (Brasiliense/Embrafilme), enriquecida por ensaios de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet e outros.

    É a esse corpo ensaístico primeiro que responde agora o novo projeto editorial coordenado por Calil. O enfoque eminentemente documental das primeiras edições, revelado pelo critério cronológico de publicação dos textos e pela ausência de notas complementares, é substituído agora por novos recortes interpretativos.

    "O Cinema no Século" inaugura a empreitada com a seleção de 83 textos, publicados entre 1941 e 1970, a maioria dos quais (73) originários do "Suplemento Literário", mas contendo ainda quatro resenhas do jovem crítico, nas páginas da influente revista modernista "Clima" (1941-44), na qual debutou ao lado de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Lourival Gomes Machado, Gilda de Mello e Souza.

    Esse reordenamento rompe com a cronologia da publicação dos textos, reunindo-os por associações temáticas e iluminando-os com notas pontuais redigidas pelo próprio Calil e por Adilson Mendes, autor de "Trajetória de Paulo Emílio" (Ateliê Editorial, 2013).

    O título adianta parcialmente o vetor escolhido: respeita-se o desenrolar da história do cinema no século 20, dos mestres essenciais da era muda (Méliès, Griffith, Eisenstein) à "nouvelle vague" (Chabrol, Truffaut, Resnais), com extensas passagens pelos modernizadores da Hollywood sonora (Ford, Welles) e por mestres incontornáveis de escolas nacionais (Grierson e o documentarismo britânico; Lang e o apogeu do cinema mudo germânico; Fellini, Rossellini e De Sica no pós-neorrealismo; Renoir e Clair na geração de ouro do entreguerras francês).

    Sobrepõe-se, contudo, a esse esquema uma ordem interna ditada pelos próprios escritos de Paulo Emílio, de tal maneira que a antologia se abre com uma parte dedicada ao cineasta de predileção do autor, Charles Chaplin (1889-1977), e se encerra com a reunião de seis ensaios que discutem arcos históricos maiores, quatro dos quais dedicados ao cinema americano (do faroeste ao Oscar, da pioneira Film Library do Museu de Arte Moderna de Nova York às particularidades do estúdio United Artists).

    Essa astuta reengenharia editorial, combinada à certeira seleção de autores, obras e temas, a um só tempo revaloriza o rigoroso pensamento cinematográfico de Paulo Emílio e permite reconstituir seu adensamento. É assim, por exemplo, que a nova disposição dos textos torna ainda mais clara a discussão da linha evolutiva da linguagem cinematográfica formada pelo Griffith de "Intolerância" (1916), pelo Chaplin de "Casamento ou Luxo?" (1923) e pelo Welles de "Cidadão Kane" (1941), ou o debate em torno da tríade "autor, ator, personagem" que caracteriza Erich von Stroheim (1885-1957) e Orson Welles (1915-1985), mas não Vittorio De Sica (1901-1974).

    Cinema foi um amor tardio para Paulo Emílio, que flertou primeiro com a medicina e provavelmente teria casado com a política, de convicção socialista, não fosse a reorientação ditada por sua prisão, no dia do próprio aniversário, pelo acirramento da repressão varguista que se seguiu à revolta comunista de 1935. A fuga do cárcere paulistano, no começo de 1937, levou-o a um primeiro período europeu, de cerca de dois anos e meio, do qual retornou inoculado pela paixão cinematográfica.

    A sólida formação literária e filosófica foi complementada de forma autodidata, na cinemateca informal e cotidiana das salas de Paris, para onde ele voltaria, após o interregno como resenhista oficial de "Clima", para uma segunda e estendida temporada (1946-54).

    Foi nesse período que escreveu seu "Vigo" e que, a partir do convívio com personalidades do vulto do crítico André Bazin (1918-58) e do colecionador Henri Langlois (1914-77), consolidou uma erudição fílmica que dedicaria o restante da vida a compartilhar.

    A seminal "postura pedagógica" citada por Calil nos textos de "O Cinema no Século" foi exercitada na missão pública autoimposta de funcionar como um autêntico "homem-cinemateca", compensando com o talento de escritor de cinema o difícil acesso a filmes, livros e revistas especializadas no Brasil em construção do pós-Guerra. "Levo o cinema a sério porque o considero uma arte", escrevia ele em 1941 em "Clima", semeando terreno quase virgem.

    É da mesma época a convicção de que "o cinema é uma arte nacional –fundamento número um da Nova Arte". Nada mais natural, portanto, que na maturidade Paulo Emílio fosse progressivamente transferindo as energias do ensaísmo cosmopolita, de enorme impacto na formação do grupo formador do cinema novo, para a ação institucional (Cinemateca, universidades, festival) e para a reflexão sobre a produção brasileira.

    Premonitoriamente, resignado diante da "era da TV", o crítico constatava em 1970, no texto que encerra a antologia: "O que o cinema atual tem de bom deriva de sua progressiva desimportância como fenômeno social".

    Radicalizada essa transição pela era da internet, não há Google ou Wikipedia que superem sua escrita generosa para nos guiar pela espessa floresta cinematográfica que, passados 120 anos, desaguou na presente algaravia digital.

    AMIR LABAKI, 52, é cineasta, crítico de cinema e fundador do festival É Tudo Verdade de documentários.

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