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    Arquivo Aberto - Conversas póstumas

    MILTON OHATA

    27/06/2015 02h04

    São Paulo, 2013

    Em outubro de 2013, Eduardo Coutinho esteve pela última vez em São Paulo. A Mostra Internacional de Cinema exibiu uma retrospectiva de seus filmes e nela foi lançado um livro com entrevistas e críticas de Coutinho, complementados por uma antologia de textos sobre sua obra. O diretor de "Cabra Marcado para Morrer" relutou até o final em sentar à mesa de autógrafos. Para ele, isso daria a entender que chancelava a admiração que o volume dedicara ao seu trabalho. A fila dos fãs era longa, e ele acabou cedendo depois de encontrar uma solução: assinaria todos os exemplares como Stephen Rose, pseudônimo que inventara em um texto na revista "Piauí".

    Nesses dias da retrospectiva, Coutinho ficou a maior parte do tempo no quarto do hotel. Telefonava-lhe diariamente para saber se precisava de algo e combinar o que faríamos mais tarde. Entre sessões da Mostra, jantares, solicitações da imprensa e um café de esquina no Baixo Augusta, conversávamos durante as corridas de táxi pela cidade. Numa delas, Coutinho comentou que gostaria de ver "Vidros Partidos", episódio feito pelo diretor espanhol Víctor Erice para "Centro Histórico" (2012), um filme coletivo também exibido na programação daquele ano.

    Arquivo pessoal
    Milton Ohata (esq.) e Eduardo Coutinho no lançamento do livro sobre o cineasta em São Paulo em 2013
    Milton Ohata (esq.) e Eduardo Coutinho no lançamento do livro sobre o cineasta em São Paulo em 2013

    Acabamos por perder as sessões, e Coutinho voltou ao Rio para as filmagens do que seria "Últimas Conversas". Um mês depois, nos reencontramos no lançamento carioca do livro. Telefonei para ele poucos dias antes daquele domingo trágico de fevereiro de 2014 para dizer que a primeira edição havia esgotado e preparávamos a reimpressão. Como em muitos de seus documentários, Coutinho me perguntou: "E isso é bom ou é ruim?"

    Embora tenha uma obra enxuta, Víctor Erice é considerado o maior diretor do cinema espanhol junto a Luís Buñuel. Por coincidência, a Mostra de 2014 trouxe três de suas obras-primas. Quando soube disso, imediatamente recordei aquele comentário de Coutinho, solto sem muita ênfase dentro do táxi, e assisti às três tentando entender a sua vontade de ver "Vidros Partidos" (que conheci depois, já que não estava no miniciclo).

    As semelhanças desse filme com os de Coutinho são muitas. Nele, com o pano de fundo da atual crise econômica em Portugal, a pequena e a grande história se entrelaçam. Antigos operários de uma fábrica falida desfiam suas recordações sobre a rotina no trabalho –como em "Peões "(2004), filme do diretor brasileiro sobre as greves do ABC paulista lideradas por Lula.

    Não sei se Coutinho conheceu os filmes anteriores de Víctor Erice. Há muitos pontos de contato com "O Sol do Marmelo" (1992), documentário sobre o retrato de um marmeleiro que frutifica ao longo das estações no quintal de um pintor: uso de equipamentos de vídeo para planos longos, sequência da filmagem igual à sequência da montagem, ausência de roteiro, limites borrados entre ficção e documentário.

    Mas penso sobretudo noutra comparação, mais cavada, entre "Últimas Conversas", o filme que Coutinho não pôde concluir, e o longa de ficção "O Espírito Da Colmeia" (1973), a estreia brilhante de Erice.

    Guardadas todas as diferenças, existe em ambos o fascínio pela liberdade selvagem das associações infantis, ainda intocadas pelo sistema de regras dos adultos (Roberto Schwarz descobriu algo parecido nos diários de Helena Morley). No filme de Erice, a menina vivida pela atriz Ana Torrent descobre a morte real por meio da figura simbólica de Frankenstein, que a impressionara numa sessão do filme de James Whale na aldeia em que vivia.

    Descobrir o sentido do mundo é associar pedaços desconexos, como as partes de que o monstro é feito. A graça da garotinha que fecha "Últimas Conversas" está na leveza com que fala de tudo, como se as palavras ainda não carregassem qualquer experiência. Para as duas meninas, pessoas, coisas, símbolos, sentimentos, ficção e realidade têm mais ou menos o mesmo peso.

    Depois de sua morte, minhas conversas com Eduardo Coutinho serão todas assim.

    MILTON OHATA, 47, é doutor em história pela FFLCH-USP e editor da Cosac Naify. Organizou "Um Crítico na Periferia do Capitalismo - Roberto Schwarz" (Companhia das Letras) e "Eduardo Coutinho (Cosac Naify).

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