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    Ernest Hecht, lendário editor que ama o Brasil

    FELIPE FORTUNA

    28/06/2015 02h05

    RESUMO A rainha Elizabeth 2ª decidiu neste mês de junho condecorar o editor Ernest Hecht, da britânica Souvenir Press, com a Ordem do Império Britânico pelos serviços prestados à edição de livros e à caridade. O homem que fugiu da antiga Tchecoslováquia é um amante do futebol, do Brasil e de seus músicos e escritores.

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    Todos os dias úteis, um senhor octogenário entra no edifício em frente ao Museu Britânico. Aquele que caminha pela Great Russel Street servindo-se do auxílio de uma bengala é Ernest Hecht, há 64 anos no comando da Souvenir Press –talvez a última editora independente do Reino Unido.

    Já em 2000 o editor, nascido em 1929 na então Tchecoslováquia, acumulava uma lista de singularidades relacionadas à sobrevivência de seu negócio. Um artigo do jornal "The Times" o chamava sucessivamente de "o último dos empreendedores literários do país", "a mais singular figura do mercado editorial local" e seguramente "a mais desarrumada".

    Passados 15 anos, nota-se, mesmo de longe, que o pulôver velho que veste é discretamente esburacado. Usa um boné do seu time preferido, o Arsenal, que deve datar do campeonato vencido em 1953, ou até de um pouco antes.

    Uma visita ao seu escritório revela o mesmo estilo –pilhas de papéis e livros elevam-se da mesa ou do chão, sem qualquer ordem aparente, embora o editor garanta ser capaz de encontrar o que procura. Mas Ernest Hecht não se tornou conhecido pelo que está desfeito, e sim pelo catálogo que construiu para a editora que não desapareceu apesar dos prognósticos para o ramo.

    A Souvenir Press exibe uma inesperada combinação de livros respeitáveis, como um estudo sobre Samuel Beckett, a poesia e as memórias de Pablo Neruda ou os romances de Knut Hamsun.

    Ao lado desses autores laureados com o Nobel, títulos que corroboram a máxima que o editor vive a repetir: a de que sua maior responsabilidade perante um autor é a de permanecer financeiramente solvente. Por isso, também publica manuais e livros de autoajuda que cobrem temas como ornitologia, a história do papel higiênico e sono para pais cansados.

    Esse conjunto mais ou menos implausível de qualidades faria de Hecht um sujeito interessante por si só –não fosse a sua história pessoal fazer dele uma figura muito atraente para brasileiros.

    FUTEBOL

    Tudo começou na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, quando a seleção brasileira se revelou ao mundo. Zagallo, Garrincha, Pelé e Pepe foram os jogadores que se fixaram na mente do editor que, a partir de então, tornou-se um fã empedernido do Brasil, do seu futebol e da sua cultura.

    No jogo Brasil x Inglaterra, em 11 de junho, em Gotemburgo, ele já não mais torcia para o país monarquista... Havia elegido a seleção brasileira e o Arsenal como as suas paixões para o resto da vida –o que acabou repercutindo na linha editorial da Souvenir Press.

    A editora tem, além do logotipo, um brasão, que reúne os três elementos basilares da vida de Ernest Hecht: um sorvete de casquinha, uma bola de futebol e um livro.

    Devidamente homologado pela Heraldry Society –organização que examina todas as propostas que desejem perpetuar os símbolos essenciais escolhidos por seus detentores–, o brasão, infelizmente, não registra a persistência de um elemento agora essencial à vida do editor: a caipirinha.

    O gosto pela bebida conheceu o seu auge logo nas primeiras Copas a que assistiu, quando, tendo ido ao Chile, em 1962, para acompanhar o certame mundial no qual a seleção brasileira foi novamente vitoriosa (ele se orgulha de ter assistido no estádio a todas as vitórias brasileiras em Copas), acabou vindo ao Brasil e, especificamente, ao bar Bip Bip, na rua Almirante Gonçalves, em Copacabana.

    A viagem a Santiago havia criado uma oportunidade para ir a São Paulo, de onde regressaria a Londres. Foi assim que acabou conhecendo Carolina Maria de Jesus, a autora de "Quarto de Despejo". O relato da vida de uma favelada havia sido publicado em inglês, no mesmo ano daquela Copa, como "Child of the Dark" (filha da escuridão). Ernest Hecht fala comovido sobre os filhos da escritora, sobre sua casa "completamente vazia, à exceção de uma tapeçaria" e do samba que tocava persistente do lado de fora. No Reino Unido, o livro traduzido pela Souvenir Press ganhou o título de "Beyond All Pity" (além de toda piedade) –e foi, uma vez mais, um notável sucesso.

    Logo se convenceu de que deveria visitar o Rio de Janeiro, instalando-se por fim no hotel Miramar, na av. Atlântica. O mar perto da janela, as pessoas bonitas e quase desnudas o convenceram a ficar pelo menos um mês na cidade, depois de uma troca de telegramas com o escritório em Londres.

    Na cidade, que logo se tornaria ainda mais famosa por meio da canção "Garota de Ipanema", Ernest Hecht ia fazendo amigos. Um deles foi Fernando Sabino, que estava lançando "A Mulher do Vizinho" no restaurante do clube dos Marimbás, no final do Posto 6.

    Começava assim uma amizade que também prometia muito ao mundo literário: Hecht foi o responsável pela edição em inglês do romance "O Encontro Marcado", que recebeu o título de "A Time to Meet" (um tempo para o encontro) e seria lançado em 1967.

    Na viagem, o editor percebeu uma lacuna a preencher: no Reino Unido, o país tropical só era conhecido pela seleção de futebol.

    Coincidentemente, Fernando Sabino seria nomeado adido cultural junto à Embaixada brasileira em Londres (entre 1964 e 1966), o que revigoraria os contatos com o editor. Em setembro de 1965, os dois amigos viajaram juntos para o Brasil para participar do Festival de Cinema no Rio.

    Durante o festival, Hecht testemunhou o extraordinário: um animado diálogo entre Tom Jobim e o maestro francês Michel Legrand por meio de um idioma completamente desconhecido para os dois –e para os demais. Apresentações de Vinicius de Moraes, com seu terno diplomático, na boate Zum Zum. Conversas literárias e empreendedoras com o editor Alfredo Machado, um de seus grandes companheiros para toda a vida.

    A vibração permanente dos novos amigos e dos lugares convenceu Ernest Hecht de que os brasileiros –e os cariocas, em particular– eram "irlandeses mediterrâneos" a serem descobertos. E caberia a ele tentar difundir ao máximo esse fenômeno em terras britânicas, por meio de livros e de divulgação nos jornais.

    A tarefa era dificílima. No mundo literário, apenas Jorge Amado era uma aposta segura –em especial com o quarteto feminino de Gabriela, Dona Flor e, mais tarde, Tereza Batista e Tieta. Nos anos 1960, o boom da literatura latino-americana jogou para escanteio, em vez de salientar, os escritores brasileiros: os nomes cotados eram os de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortázar.

    BORDEL

    Hecht ajudava como podia: no caso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados em Londres durante a ditadura militar, agiu como fiador de uma casa no bairro de Chelsea. Quando um sisudo advogado inglês lhe perguntou como pagaria a dívida caso algum dos compositores baianos atrasasse o aluguel, indicou que transformaria a casa num bordel, mas exigiu que a condição fosse incluída num parágrafo do contrato –o que foi aceito, quase sem hesitação.

    O editor reconhece que, embora às vezes acidentadas, recebia mais visitas de artistas brasileiros em Londres do que a embaixada. E se orgulha de conhecer pessoas que nem mesmo os brasileiros recordam com precisão, a exemplo de Marisa Urban e de Antonio Olinto.

    Com tanto conhecimento acumulado sobre o país, Ernest Hecht pode fazer observações inesperadas. Uma delas diz respeito à quantidade com que a palavra "chorar" comparece nas canções populares do Brasil.

    "Não importa se são de tristeza ou de muita alegria, as lágrimas inundam o cancioneiro, muito mais do que coração, embora, devo admitir, bem menos do que saudade. Mas o fato é que também se chora muito de saudade!"

    Por outro lado, opina, as autoridades culturais do país deveriam investir muito na tradução de livros de não ficção do Brasil. "Esse é um nicho vazio: não se conhecem, em língua inglesa, a sociologia, a crítica literária, os livros jornalísticos, as biografias produzidas no Brasil", diz.

    O senhor desarrumado, que chegou ao Reino Unido em 1939, valendo-se do transporte de crianças que o tirou de vez da Tchecoslováquia diz que o que mudou sua vida "completamente" foram mesmo as praias do Rio.

    É com o entusiasmo de quem faz descobertas diárias que ele se dirige de táxi, rotineiramente, aos escritórios da Souvenir Press. Acaba de entrar em cheio no mercado de e-books, sempre independente, sem se preocupar com herdeiros ou possíveis parceiros comerciais. Seu trabalho e suas lembranças nunca são acompanhadas de reclamação –geralmente, são seguidas de uma gargalhada. Tudo o que toca e faz parece estar resumido no título de um dos livros editados pela própria Souvenir –"An Affair of the Heart" (um negócio do coração), que pode ser adquirido por módicas 9,99 libras.

    FELIPE FORTUNA, 52, é diplomata, ensaísta e poeta. Publicou os livros "A Mesma Coisa" e "O Mundo à Solta" (Topbooks).

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