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    Uma entidade de humor oscilante

    GUSTAVO FIORATTI

    28/06/2015 02h07

    RESUMO Jornalista relata neste texto sua experiência em caminhada ao pé do K2, segundo pico mais alto do mundo, no Paquistão. Entre cansaço, sede, galinhas em caixotes, um bode e militares armados, os alpinistas também convivem com paquistaneses pobres que ganham muito pouco para carregar suprimentos e barracas.

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    No aeroporto de Guarulhos, a atendente atrás do balcão perguntou: tem certeza de que quer embarcar? Sabe qual a situação do país hoje?

    O Paquistão não estava exatamente em guerra naquela tarde de julho passado. Mas uma série de atentados terroristas havia deflagrado uma campanha mais dura do exército do país contra o Talibã e outros grupos jihadistas.

    A operação havia espalhado postos militares por estradas e ruas de todo o território paquistanês. Para entrar em um hotel em Islamabad, a capital do país, era necessário passar por até três pontos de revista.

    Meu destino era a cidade de Skardu, no nordeste, de onde uma expedição com sete brasileiros e oito paquistaneses sairia rumo ao monte K2, 60 anos após a primeira ascensão ao topo dessa, que é a segunda montanha mais alta do planeta. O marco fora conquistado pelos italianos Achille Compagnoni e Lino Lacedelli em 1954.

    No Paquistão, guias com experiência no trajeto cobram de US$ 1.600 a US$ 3.000 (de cerca de R$ 4.950 a R$ 9.280) para organizar a parte terrestre do percurso. Eles contam que o turismo foi tradicional no país e resiste sustentado por montanhistas europeus e asiáticos, esvaziado em quase 70% em relação a fluxos anteriores ao 11 de Setembro. No próximo mês, reabre-se a temporada de escaladas.

    Marinheiros de primeira viagem, não subiríamos ao cume da montanha. Com seus 8.611 metros acima do nível do mar, o K2 tem fama de ser bem mais mortal que o Everest, de 8.848 metros, no Nepal. Nossa ideia era apenas conhecer o mítico trajeto até sua base, caminhada de 11 dias para ir (subida) e sete para retornar (descida), totalizando 180 km de andanças e pausas para o sono sob as estrelas.

    Para cada quatro pessoas que chegaram ao topo do K2, uma morreu, e dois episódios fizeram crescer essa marca. Em 1986, 13 mortes deram título ao chamado Verão Negro. E, em 2008, uma avalanche desencadeou outras 11 mortes.

    A última pessoa que o K2 matou foi o alpinista espanhol Miguel Ángel Pérez, que naquele julho de 2014, quando descia do cume ao chão, foi provavelmente acometido por um edema cerebral. Altura atrai, falta de oxigênio mata. O nome dele foi gravado em uma placa de alumínio. Ao pé do K2, há 83 iguais.

    Quando digo que o K2 matou Pérez estou falando como alpinistas se referem ao monte: uma entidade de humor oscilante. Em 2014, morte de Pérez à parte, o K2 concedeu passagem a 48 montanhistas, diz o site explorersweb.com.

    O início da caminhada à tal entidade é o vilarejo de Askole, onde plantações de arroz balançam ao pé de montanhas. Só carros de tração nas quatro rodas chegam àquelas paragens, percorrendo estradas sinuosas de terra que recortam precipícios e atravessam riachos. As velhas pontes de metal e madeira no trajeto não podem nunca ser fotografadas. Militares dizem que as imagens ajudam grupos terroristas a estudá-las a fim de planejar atentados.

    Na caminhada ao K2, nos acompanhariam ainda 37 carregadores. Camponeses pobres, no verão eles ganham US$ 7 (cerca de R$ 21,60) por dia, mais gorjetas, para carregar até 30 kg em caminhadas que se estendem por até 12 horas diárias. No lombo, levam comida, mochilas, barracas. O trabalho deixa cicatrizes profundas no corpo de jovens e velhos.

    Na tropa que seguiu adiante, enfileiravam-se ainda 20 mulas, 5 galinhas vivas encaixotadas, um bode que viraria churrasco já a cerca de 5.000 metros de altura, 2.500 metros acima daquele ponto inicial. Propus o movimento "Free the Goat" (liberte o bode). Não fui atendido. A carne é doce. E dura.

    É difícil lembrar o nome de alguém no Paquistão, porque lá não existem Gustavos, Ricardos e Fernandos. Mas, como a convivência diária é capaz de superar distâncias culturais e a barreira da língua, não me esquecerei de Nassir e Rasul.

    Nassir, 22, na companhia de uma mula que carregava seis mochilas em seu lombo, passou por mim e perguntou com inglês razoável: "Oi, cara, você é rico?". Eu, que aos 37 anos pago aluguel e tenho um carro popular, respondi que não, mas ele não aceitou a resposta: "Olha meus sapatos, eu sou pobre, você é rico!".

    Rasul, 41, destacou-se por um episódio traumático: ele se impacientou, como muitos se impacientam naquele trajeto longo e quente. Queria chegar logo ao camping de Paiju, uma de nossas paradas. Andávamos ao lado de uma ribanceira íngreme, sete, oito metros de altura, e ele passou a apressar cinco mulas à nossa frente, dando golpes violentos com os pés no chão de pedra e areia.

    Uma mula pisou em falso. Rolou a ribanceira, caiu de costas. Rasul procurou um caminho para descer entre as pedras. Examinou cada osso do animal. "Ela está bem?", perguntei lá de cima. "Sim, são fortes". Adiante, encontramos cadáveres de outras duas mulas que não haviam sido tão fortes como aquela. Os riscos, as histórias de erros que acabaram em mortes e o esforço físico levaram Rasul a "odiar" aquele trabalho. Ele contou que, num verão passado, foi acometido por uma cegueira temporária causada pela luz refletida da neve.

    GLACIAR

    Logo após Paiju, a paisagem muda. Ali se inicia o glaciar, terreno acidentado, onde camadas de gelo cobrem pedras, em cujas curvas sinuosas as águas do degelo vão cavando crateras, grutas e formações similares. O ir e vir das mulas deixa um rastro de fezes por todo o caminho. Há pontos cheios de moscas, de forma que é preciso andar muitas vezes com um lenço cobrindo a boca.

    No glaciar, nada parece fixo, o solo de pedras escapa aos pés, as avalanches emitem sons de trovão. Sem vegetação, não há sombra para se proteger do sol de até 40 graus, temperatura que pode cair para 20 negativos nas noites de verão. Na parte mais baixa do trajeto, há um rio volumoso de água esbranquiçada. Poucas fontes potáveis aparecem entre as pedras, o que só vai mudar no fim do trajeto.

    Conforme o K2 se aproxima, o caminho torna-se mais belo, e é possível ouvir rios debaixo de nossos pés, correndo sob as camadas de gelo que nos servem de chão.

    Nesse ponto, após enfrentar diarreia, febres, o mal-estar causado pelo ar rarefeito e todos os dias sem banho, meu cansaço se abriu para breves delírios, em parte provocados pela imagem de homens com metralhadoras correndo em minha direção. Pessimismo puro; eram apenas militares.

    Outras belas figuras no caminho compensaram o susto. Passados 11 dias de caminhada, noites de luas imensas e cânticos religiosos entoados ao anoitecer pelos muçulmanos, conheci a alpinista espanhola Anna Pujol.

    Ao pé do Broad Peak, cujo cume está a 8.047 metros, ela fazia anotações. Os dedos dos pés haviam congelado 50 metros antes de seu grupo chegar ao cume. Acrescentou-se uma ventania, e a expedição teve de descer. Com expressão tranquila, esperava um helicóptero. O risco de amputação diminuiria se chegasse logo ao hospital.

    Ingenuamente, antevi um clima mais descontraído no acampamento na base do K2, algo que se revelasse como uma recompensa depois de dias tão árduos. Mas, ao pé da montanha, o clima é de trabalho. Se não estão escalando, alpinistas estudam ou conferem equipamentos. Também praticam o escambo: longe do comércio, troca-se um naco de salame por refresco Tang, por exemplo.

    Ao pé do K2, foi estranho pensar que alguém ali subiria o paredão, bem mais exaustivo do que o trajeto que o antecede, supus. Na volta, perguntei ao alpinista alemão Felix Berg, 35, se havia alguma propensão ao suicídio naquele esporte. Antes de fechar a barraca para dormir, ele disse que bons alpinistas não posam "de valentões" e evitam situações críticas. Outros atletas de rostos envelhecidos me fizeram entender também: o que eu via como provas inócuas de heroísmo poderia ser, sob a argumentação apaixonada deles, vontade de viver mais.

    Foi no caminho da volta que passei pelo momento mais agudo da viagem. Entre Khoburtse e Paiju reparei que Sherz Ali, carregador de 28 anos, pai de seis filhos, levava uma carga excessiva nas costas, e o fato agravou em mim a crise de consciência que se avolumava desde o início da viagem.

    CULPA

    As árvores de Paiju apareceram como um ponto verde em uma montanha não muito distante, mas as horas passavam, o sol ardia, e Paiju não vinha nunca. A água em meu cantil acabou três horas antes de eu chegar. Senti um corte no meio dos lábios, e deles também brotou uma pasta de mucosa morta, que eu limpava nas mangas. Exausto, pensei que seria necessário voltar a oferecer ajuda a Sherz Ali. E, se a omissão é de fato um mal, tornei-me ali o próprio demônio.

    O camping de Paiju estava sujo, a água vertia de uma mangueira sobre um chão cheio de lixo e restos de comida. Era ali que alpinistas e "trekkers" lavavam a louça. Quando decidi enfrentar o nojo e matar a sede, alguém avisou que tinha Coca-Cola à venda em uma cabana não muito distante, à porta da qual, de joelhos, perdi a voz antes de dizer "Coke, please" a um paquistanês maltrapilho.

    Não havia Coca, mas havia uma garrafa do refrigerante Mountain Dew imersa na água suja de um balde, que eu apontei com o dedo. William Lee, amigo brasileiro, me salvou, comprando a garrafa por dez dólares. Entornei dois litros goela abaixo e, embora aquilo tenha caído no estômago como uma faca, pude retomar o fôlego.

    Karim Hayat, 42, alpinista paquistanês veterano que eu havia conhecido ao pé do Broad Peak estava logo ao lado, assistindo à minha cena ridícula. Também com lábios rachados, ele me passou aquele tipo de ensinamento que os treinamentos empresariais adorariam transformar em metáforas do progresso: "Escalar uma montanha nos dá forças para escalar outra mais alta depois", explicou.

    Karim só pensou em desistir da profissão uma vez. Em 2013, enquanto escalava o Nanga Parbat, não muito longe dali, um grupo talibã matou nove alpinistas no acampamento que fica ao pé da montanha. Pelas ondas do rádio, lá de cima, ele ficou sabendo que os terroristas colocaram seus colegas em linha, de joelhos, exigiram dinheiro e outros pertences. E então abriram fogo.

    Karim não conseguia respirar depois da notícia. "Entrei em choque", contou, "e decidi descer". Ao ver os mortos, ele sentiu que havia "perdido o mundo".

    Perder o mundo é uma expressão interessante, prossegui pensando no dia seguinte.

    Sherz Ali andou por horas ao meu lado, e eu ao lado dele, observando aquele peso em suas costas. Com inglês pobre, perguntou se eu poderia doar as botas ao fim da viagem, o que, para me livrar de algum culpa, eu disse que faria.

    Para agradecer a promessa, ele apanhou meu cantil. Sem equipamento, escalou uma pedra, cerca de dez metros, e voltou. Em um mundo perdido, penso agora, nada poderia ter valido mais do que água e aquela pequena dose de amizade.

    GUSTAVO FIORATTI, 37, é jornalista.

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