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    Pintura é passatempo e fonte de renda para presos nos Estados Unidos

    RANDY KENNEDY
    GRAHAM BOWLEY
    COLIN MOYNIHAN
    DO "NEW YORK TIMES"

    01/07/2015 17h56

    A notícia de que Richard Matt, condenado por homicídio e morto pela polícia na sexta-feira (26) depois de uma caçada humana que se estendeu por uma semana, dedicava a maior parte de seu tempo na cadeia à pintura de retratos tecnicamente competentes de Julia Roberts, Barack Obama e de parentes de seus colegas presidiários, e os trocava por tratamento preferencial, surgiu como surpresa para muita gente.

    Mas para aqueles que passaram anos ensinando arte nas penitenciárias, ou produzindo-a como prisioneiros, um passatempo como esse é ritual fortemente incorporado à vida no cárcere, e praticado, informalmente ou como parte de programas estabelecidos, por ampla gama de prisioneiros, muitos dos quais, como Matt, com passados profundamente violentos e pouca experiência em arte.

    As pessoas que conheciam Matt na Penitenciária Clinton, em Dannemora, Nova York, dizem que ele pintava para se manter ocupado e obter favores dos guardas e dos colegas detentos. Esses favores eram "um tapinha nas costas por pintar retratos dos familiares de detentos", disse John Mulligan, que conviveu com Matt durante os dois anos e meio que passou como prisioneiro em Dannemora, e depois de libertado pedia retratos e desenhos ao antigo colega de presídio. Mulligan acrescentou que "a pintura era uma maneira de ele não ficar aferrado às suas preocupações o tempo todo - uma forma de escape".

    As pinturas de Matt tendiam ao que especialistas em arte penitenciária descrevem como um gênero popular que recebe pouca atenção fora das prisões: retratos de celebridades, figuras políticas e familiares dos colegas detentos, pintados com base em fotos.

    O trabalho de Matt atraiu o interesse de pelo menos um guarda da penitenciária Clinton, no interior do Estado de Nova York, da qual Matt e outro detento, David Sweat, escaparam no começo de junho. (A informação sobre Sweat era a de que ele estava em poder das autoridades, no domingo.) Gene Palmer, que trabalha na penitenciária desde 1987, disse a investigadores que contrabandeou uma chave de fenda e alicates e fez outros favores a Matt em troca de uma dúzia de pinturas e outros trabalhos do detento, de acordo com documentos judiciais e com uma pessoa informada sobre a situação. Palmer também disse aos investigadores que havia ajudado Matt a enviar uma de suas pinturas, do personagem de TV Tony Soprano, pelo correio a uma mulher na Flórida, que vendeu o quadro no eBay por US$ 2 mil.

    As normas sobre o envio de obras de arte pelo correio ou autorização para que detentos recebam pagamento pelo seu trabalho variam consideravelmente entre as penitenciárias do país.

    Mulligan, que descreveu Matt como seu "melhor amigo" na penitenciária Clinton, disse que embora não tivesse pago pelas obras de Matt, havia enviado dinheiro e comida ao amigo depois de ser libertado. Ele conta que Matt aprendeu sozinho a pintar, provavelmente ao servir uma outra sentença de prisão no México, muitos anos atrás. Na Clinton, Matt era considerado como de longe o artista mais talentoso.

    "Ele era o melhor no sistema, pelo que todo mundo acreditava", disse Mulligan. Mas acrescenta que seus esforços para atrair reconhecimento ao trabalho do amigo fora da prisão não deram resultado. "A comunidade da arte é dura", afirmou.

    As obras de arte de prisioneiros especialmente notórios - Charles Manson, John Wayne Gacy - sempre encontram uma base ávida, ocasionalmente macabra, de colecionadores. O mercado para a arte de detentos tipicamente varia de pequenas galerias e exposições ao eBay e outros sites que atendem colecionadores, entre os quais o murderauction.com e o murderabilia.net.

    A Prisons Foundation, estabelecida por ex-presidiários em Washington 12 anos atrás, diz receber cerca de duas obras por semana para venda, de detentos ou suas famílias. Os preços das peças variam de US$ 20 a mais de US$ 1 mil. A fundação planeja realizar uma exposição de peças de arte criadas por prisioneiros em Governors Island, Nova York, com abertura em 21 de julho e cerca de 80 itens à venda.

    Phyllis Kornfeld, que lecionou arte em prisões por mais de 30 anos, disse que embora alguns dos artistas presidiários demonstrem grande talento e que algumas de suas peças encontrem caminho para as galerias e colecionadores, a vasta maioria dos prisioneiros que faz arte tem acesso limitado a materiais e instrução, e simplesmente pintam, desenham e esculpem para passar o tempo e como forma de expressão.

    "É raro que a motivação seja o lucro", disse Kornfeld, autora de "Cellblock Visions: Prison Art in America", livro publicado pela Princeton University Press em 1997. Ela organizou uma exposição, "Arte Folclórica e Artefatos da Cultura Penal Americana", na Forbes Library, em Northampton, Massachusetts. "É só uma das expressões de humanidade que encontra um caminho para emergir, como sempre acontece", ela acrescentou.

    Anthony Papa, que estava cumprindo uma sentença de entre 15 anos e prisão perpétua em Sing Sing, na cidade de Ossining, Nova York, quando um colega o ensinou a pintar, disse que a arte é "uma ferramenta muito poderosa de reabilitação, não só para o prisioneiro mas para a instituição". Papa, que defende uma reforma na política do país quanto às drogas, conquistou algum sucesso como pintor depois de sua libertação, vendendo peças, com temas em geral associados à justiça social, por preços de alguns milhares de dólares.

    Dave Sanders - 26.jun.15/The New York Times
    Anthony Papa com algumas de suas obras em seu apartamento em Nova York
    Anthony Papa com algumas de suas obras em seu apartamento em Nova York

    Por algum tempo, durante seu período de encarceramento, disse ele, os detentos podiam exibir suas obras em uma mostra anual, "Pintura na Prisão", na sede do Legislativo estadual de Nova York em Albany. Mas o programa foi encerrado quando um novo comissário do serviço penitenciário estadual proibiu a venda de obras de arte dos detentos em 2002, afirmando que isso podia ser visto como uma oportunidade de lucro criada pelo Estado para os prisioneiros. No ano anterior, haviam surgido protestos quando a mostra incluiu um trabalho de Arthur Shawcross, um assassino serial cujos desenhos de figuras como a princesa Diana e Papai Noel ocasionalmente eram vendidos por centenas de dólares.

    Em muitas penitenciárias de segurança máxima em todo o território dos Estados Unidos, os detentos são autorizados ou encorajados a fazer arte, mas a gama de materiais permitidos é estreita, por medo de que coisas como pincéis ou tintas de base química venham a ser usadas como armas ou para outros propósitos ilícitos. (Os pincéis podem ser desmontados, por exemplo, para reaproveitamento de suas peças metálicas.)

    "Nada inflamável", enumera Papa, recitando a lista. "Eu usava principalmente tinta acrílica e aquarelas. Fazia barganhas com os guardas para obter materiais. Se eu estava pintando seus retratos, eles traziam tinta a óleo".

    Rachel Marie-Crane Williams, professora associada da Universidade de Iowa que deu aulas de arte em penitenciárias por muitos anos, diz que os detentos se arranjam com o material que conseguem obter. Em alguns casos, ela diz, eles mergulham chocolates M&M na água, para usar a cor do revestimento como tinta, e fazem pincéis com papel higiênico umedecido.

    "O papel higiênico da prisão é ótimo para escultura", ela diz. "Não se desfaz".

    Martin Horn, antigo comissário do serviço penitenciário de Nova York e hoje professor no John Jay College of Criminal Justice, disse que os programas de arte podem beneficiar as autoridades tanto quanto os prisioneiros. Os prisioneiros que violem regras podem perder seu acesso aos programas, enquanto os cooperativos são autorizados a desfrutar deles.

    "O ideal é que os prisioneiros tenham alguma amplitude, alguma forma de privilégio que possa ser usada para recompensar o bom comportamento e punir o mau comportamento", ele disse.

    Matt, que estava servindo uma sentença de entre 25 anos e prisão perpétua em Dannemora desde 2008, parece ter usado tubos de tinta que ele mantinha escondidos, talvez porque fossem de um tipo considerado como contrabando. Mas Mulligan, que cumpriu sentença por assalto a banco, disse que Matt pintava abertamente em sua cela e era amplamente conhecido entre os guardas e prisioneiros como artista ativo, que sempre trabalhava com base em fotografias.

    Heather Ainsworth - 26.jun.15/The New York Times
    Desenho da apresentadora Oprah Winfrey no apartamento de John Mulligan’s em Nova York. O trabalho foi feito por Richard Matt
    Desenho da apresentadora Oprah Winfrey no apartamento de John Mulligan’s em Nova York. O trabalho foi feito por Richard Matt

    "Se a foto não fosse perfeita, ele não conseguia pintar", disse Mulligan. "Ele era sempre muito preciso sobre como queria as fotos. Ele estava trabalhando em um quadro para mim mostrando minha noiva e seu gato, com base em uma foto que enviei. Mas depois não ouvi mais notícias dele".

    Mulligan disse que não via problema em colecionar arte de um assassino condenado. "As pessoas que veem problema moral nisso são ignorantes", ele disse, acrescentando: "Não compreendem a situação na prisão".

    Ele disse ter recebido um par de ofertas por peças de Matt desde a fuga, e que antecipa que outras virão. "Espero que consiga vender algumas peças", disse Mulligan. "Espero que isso lhe valha algum reconhecimento. Não vou mentir a respeito. Se eu conseguisse vender algumas delas, mandaria parte do dinheiro à filha dele. Era o que ele desejava fazer".

    Andrew Edlin, cuja companhia controla e opera a Outsider Art Fair, disse que não tinha base real para determinar se o trabalho de Matt poderia ser mais valioso por conta de sua notoriedade ou morte. Se isso acontecer, ele disse, teria pouco a ver com a admiração dos colecionadores pela qualidade da arte, que não é especialmente distinta.

    "As razões deles seriam puramente mercenárias", disse Edlin. "Para mim, essa é uma história mais próxima da cultura pop excêntrica do que do mundo da arte".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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