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    Uma vida que faz parte da história

    LEÃO SERVA

    05/07/2015 02h00

    RESUMO Numa narrativa que se estende por 1.740 páginas, distribuídas em quatro volumes, Jorge Caldeira retrata a vida de Júlio Mesquita (1862-1927). A trajetória do diretor e dono do jornal "O Estado de S. Paulo" entrelaça-se com momentos históricos importantes, a começar pelo estabelecimento da República.

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    Tal como as musas de Homero, Jorge Caldeira abre sua monumental biografia de Júlio Mesquita com os momentos finais da odisseia desse protagonista do estabelecimento da República e do jornalismo moderno no Brasil. Mesquita era um homem recluso e de hábitos simples, embora ao longo da vida tivesse se tornado rico e influente. No início de 1927, aos 64 anos, cede à insistência dos filhos e decide participar do baile de Carnaval da elite paulistana, onde sua presença causa alvoroço e curiosidade entre os presentes.

    O Brasil saía de anos sob o autoritarismo da gestão de Arthur Bernardes (que governou de 1922 a 1926 sob estado de sítio), e ensaiava uma abertura com Washington Luís. O dono do jornal "O Estado de S. Paulo" fora preso no governo anterior, acusado de colaborar com a Revolução de 1924, quando militares rebeldes ocuparam São Paulo, que ficou sob intenso bombardeio do Exército Nacional. Depois que foi solto, sofreu anos de censura em seu jornal, tempo em que se manteve distante da visão do público. Agora saía das sombras para as luzes do Carnaval. Há um tom de vitória naquela sua reapresentação à sociedade.

    A muitos dos que ali estavam sua presença lembrava também que nos últimos anos "O Estadão", como já era chamado, passara a apoiar o oposicionista Partido Democrático e seu programa de renovação das instituições brasileiras, recém saído da primeira vitória nas urnas. Já a maior parte da elite paulista naquela festa apoiava o Partido Republicano, revolucionário quarenta anos antes e que Mesquita vira se tornar um partido corrompido.

    Por isso, o episódio corriqueiro ganha na narrativa de Caldeira um caráter paradigmático. Enquanto anda pelo baile, conversa com a grande dama da sociedade, Olívia Guedes Penteado, senta-se pouco à mesa com sua família reunida e em seguida sai a caminhar até a sede do jornal, em que não entrava há algum tempo.

    Arquivo - 15.ago.1973/Agência Estado
    4ª sede do jornal "O Estado de S. Paulo" no Palacete Martinico Prado
    Antiga sede do jornal "O Estado de S. Paulo" no Palacete Martinico Prado, na praça Antonio Prado

    Ao flanar entre prédios de uma cidade em permanente ebulição, ele vai lembrando grandes momentos de sua vida na cidade que viu crescer de 31 mil para 700 mil habitantes desde que chegou de Campinas, em 1877, para estudar direito. Caldeira destaca especialmente a impressão que Mesquita tem ao passar pela rua Boa Vista, onde se lembra do primeiro encontro com Ruy Barbosa, em 1890, nos primeiros tempos da República, um encontro que marcaria profundamente sua personalidade jornalística e política.

    De um episódio rememorado a outro, como na própria "Odisseia", o autor dispara a narrativa que ocupa 1.740 páginas distribuídas por quatro volumes percorrendo toda a história do Brasil de meados do século 19 ao ano de 1927. Até encerrar com a morte surpreendente do jornalista, acometido de um mal súbito.

    Mesquita estava desde então por merecer uma obra do porte de "Júlio Mesquita e Seu Tempo", fruto de 15 anos de pesquisa e cinco de redação. O homem e seu jornal são símbolos do capitalismo paulista, associados pela esquerda contemporânea ao estigma de conservadorismo.

    No entanto, o dono do "Estadão" se revela um "gauche" por toda a vida; participou até da versão imperial da "luta armada", quando jovem: republicano radical, ao combater a escravidão, participava de movimentos que ajudavam escravos a escapar e se refugiar em quilombos armados. Da mesma forma, defender a República no tempo do Império ou enfrentar as oligarquias da República Velha não eram lutas singelas, mas propostas de rupturas importantes.

    INDEPENDÊNCIA

    O homem público se confunde com o empresário de jornal. Quando a República se implanta, ele afasta o jornal do partido. "O Estado" apoia o regime, mas a independência faz crescer sua credibilidade, o que faz crescer o número de leitores e isso atrai mais anunciantes, cujas receitas vão custear investimentos e permitir mais crescimento. Como narra Caldeira: "Em muitos momentos, os governos confrontavam a opinião –e nessa hora os artigos e os editoriais com posições alternativas ganhavam grande visibilidade. Além disso, anunciantes de diversos produtos precisavam de identificação com o leitor como fundamento para seus gastos em publicidade –e o jornal se pautava pela escolha dos anunciantes, não dos governos".

    Ao longo das primeiras décadas da República, o "Estado" se afasta dos governos de seu antigo partido. Apoiará sucessivos movimentos de oposição, as candidaturas de Ruy Barbosa e teses propostas pelos tenentistas, o reformismo do Partido Democrático. O jornal encarnará um programa de modernização das instituições brasileiras, e isso não deixa de incomodar uma longa lista de adversários políticos. Todos, no entanto, vão se juntar em respeito diante da morte de Mesquita.

    Divulgação/Reprodução/Agência Estado
    É notável a semelhança entre Júlio Mesquita (à esquerda) e o neto Ruy (1925-2013) (à direita). Apesar da diferença de 62 anos, eles pareciam "gêmeos separados ao nascer"
    É notável a semelhança entre Júlio Mesquita (à esquerda) e o neto Ruy (1925-2013) (à direita). Apesar da diferença de 62 anos, eles pareciam "gêmeos separados ao nascer"

    Desde o lançamento de "Mauá "" O Empresário do Império" (Companhia das Letras, 1995), sua biografia do Barão pioneiro da indústria, Jorge Caldeira tem trabalhado sobre histórias de personagens que influenciaram a política e a economia do país ao seu tempo. "Mauá", "O Banqueiro do Sertão" (Mameluco, 2006) e este "Júlio Mesquita e seu Tempo" concentram a atenção no desenvolvimento do capitalismo de São Paulo.

    Além da economia, este livro acrescenta uma leitura sobre a evolução das técnicas e tecnologias do jornalismo, como expressa nos subtítulos dos volumes ("O Jornal de Prelo", "O Jornal de Rotativa" e "O Jornal Moderno"). Mesquita adotava novas máquinas e estilos jornalísticos alinhados com o que havia de mais inovador no mundo e assim impulsionava a penetração de seu jornal.

    Esse interesse pela evolução do jornalismo dá ao livro uma nova leitura de fatos, como a guerra de Canudos (1896-97). Ao narrar a história sob o ponto de vista do periódico e em paralelo com o que faziam grandes jornais do mundo, Antônio Conselheiro surge como uma versão local do Doutor Livingstone, o personagem em lugar longínquo que o jornal vai buscar com seu intrépido repórter para quem não existem distâncias. Euclydes da Cunha é como um Stanley do "Estadão" (e a batalha final em que aparece o corpo do Conselheiro pode ser vista como nosso "I Presume"). O Canudos aqui não é o de "Os Sertões" ou de "No Calor da Hora", de Walnice Nogueira Galvão, que lê o conflito nas notícias da época. Caldeira coloca a cobertura no contexto de afirmação dos jornais: ao cobrir um episódio no fundo do sertão, "O Estado" afirma seu domínio sobre todos os rincões de um território que se torna nação.

    Neto de Júlio Mesquita, Ruy Mesquita dizia que para ele a poesia tinha atingido o ápice com Fernando Pessoa e que, desde então, nada se comparava a ela. Talvez tivesse em mente um paralelo entre o avô e o poema "The Times": em muitos momentos, Mesquita talvez pensasse ombrear o grande jornal inglês ou seu xará nova-iorquino e "ter influência no mundo". E como exclama o poeta: "Santo Deus!... E talvez a tenha tido!"

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    BANCO DE DADOS

    A falta de dados econômicos sobre o período em que viveu Júlio Mesquita dificultava a compreensão da obra do personagem. Afinal, crescer 10,5% ao ano por 40 anos seguidos era muito? Mais do que o crescimento do PIB do país ou menos? Era normal ou único? Para resolver essa dificuldade, Jorge Caldeira acabou se aventurando por um trabalho que está fadado a ser fonte de dados para inúmeras pesquisas a partir de agora: ele remontou por critérios atuais informações econômicas dispersas sobre o período. Esse conjunto de dados compõe o quarto volume da obra. É uma leitura mais árida para quem não gosta de cifras, mas abre um novo campo de estudos para os pesquisadores da economia brasileira da segunda metade do século 19 em diante.

    CIDADE CENÁRIO

    Júlio Mesquita e Seu Tempo" é a biografia de um homem que testemunhou e influenciou a evolução de São Paulo. Já o recém-lançado "A Capital da Vertigem", de Roberto Pompeu de Toledo, é uma espécie de biografia da cidade. Por isso mesmo, muitas passagens do livro de Jorge Caldeira ecoam descrições de locais da cidade presentes no livro de Pompeu. As duas leituras se casam e se complementam.

    TRÊS CHOPES POR DIA

    Depois de se mudar para São Paulo, na adolescência, para estudar direito, Júlio Mesquita seguiu atado à interiorana Campinas de sua infância. E para lá ia em busca de um lugar onde não fosse reconhecido como o jornalista e político poderoso, mas apenas como o amigo de pessoas simples. Suas referências eram o modesto hotel Pinheiro e a Confeitaria Barsotti. Um dia, os convivas em sua mesa conversavam sobre os sonhos de cada um. Todos "viajaram" por palácios e haréns, fortunas e viagens. Até que um amigo de Mesquita, Saturnino Amaral, disse seu sonho: "Queria ter dinheiro para tomar três chopes duplos por dia, coisa que seus ganhos raramente permitiam", narra Jorge Caldeira. Comovido ao ouvir a simplicidade do desejo de seu amigo, Mesquita chamou o dono da confeitaria: "Seu Barsotti, o diabo é que acabei de perder uma aposta sobre sonhos realizáveis. Por isso, nosso amigo professor acaba de ganhar o direito de beber quantos chopes quiser por minha conta para o resto da vida".

    SEM CHOPES PARA O RESTO DA VIDA

    Por algum tempo, o professor Saturnino Amaral se beneficiou do presente que ganhou de JÚlio Mesquita. Até ficar sabendo da morte do amigo. Desse dia em diante, nunca mais bebeu.

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    TRECHO "JÚLIO MESQUITA E SEU TEMPO"

    O tempo em que Júlio Mesquita viveu foi de grandes transformações. Ele testemunhou a chegada da ferrovia, do telégrafo, da eletricidade, do automóvel, do avião, do arranha-céu, do rádio, do voto universal, das guerras mundiais, dos regimes socialistas e do fascismo. Todas essas mudanças refletiram no Brasil: vilarejos se tornaram metrópoles; o trabalho artesanal se misturou com o das grandes indústrias; as reuniões sociais íntimas, com a ida a estádios lotados; a cultura oral tradicional, com o modernismo. Nas eleições, as conversas fechadas passaram a conviver com os grandes comícios. Houve várias revoluções.

    Júlio Mesquita interagiu com seu tempo de forma privilegiada: começou a escrever para jornais na adolescência e a trabalhar como empregado da imprensa no início da vida adulta; tornou-se diretor e dono de "O Estado de S. Paulo", sempre trazendo mudanças. Entrou num jornal de prelo, uma publicação secundária de província, introduziu as rotativas elétricas e dominou o mercado local. Impôs ao país o jornal moderno, novidade da indústria cultural.

    Um número indica a magnitude da atuação de Júlio Mesquita no âmbito do jornalismo. Em 1888, quando ele começou a trabalhar, a publicação tinha 904 assinantes. Quatro décadas depois, em 1927, 48.638 pessoas pagavam para receber o jornal em casa.

    LEÃO SERVA, 55, é jornalista, autor de "Um Tipógrafo na Colônia" (Publifolha).

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