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    Um jantar, um pintor e um gato

    EDUARDO HAESBAERT

    05/07/2015 02h04

    Tentei morar em São Paulo, em 1990, e, com o colapso do plano econômico do presidente Collor de Mello, tive de voltar três meses depois a Porto Alegre. De volta, retomei minhas atividades, assessorando artistas a produzirem gravuras em metal. Fiquei sabendo por meio de um amigo artista, o Gelson Radaelli, que Iberê Camargo estava precisando de um impressor.

    Marcamos encontro em sua residência e ateliê. Cheguei no horário marcado, para minha sorte. Iberê já estava esperando no portão olhando para o relógio.

    Logo após os cumprimentos, ele pegou minha mão e tocou na palma para sentir se não transpirava. Com a mão seca pode se tirar cópias a palmo, que é uma impressão mais limpa e precisa, deixando tudo no lugar. Passei no primeiro teste. Fomos para o ateliê e tive a surpresa de ver a enorme prensa de origem alemã sobre uma mesa de madeira robusta e bancadas de pedra de granito preto com pias de inox, mesas para desenho, ferramentas diversas, tintas francesas e uma sala para os ácidos utilizados no processo de realização da gravura em metal. Parecia uma sala cirúrgica, como de um hospital, de tanta limpeza e instrumentação.

    Acervo Documental Fundação Iberê Camargo - 1994
    Iberê Camargo, sua mulher, Maria Coussirat Camargo, e o gato Martim em foto de 1994, em Porto Alegre
    Iberê Camargo, sua mulher, Maria Coussirat Camargo, e o gato Martim em foto de 1994, em Porto Alegre

    Comecei a tirar uma cópia à minha maneira preparando a tinta com carbonato de cálcio e óleo de linhaça. Iberê disse que não era dessa forma que se fazia e começou a passar a tinta direto do tubo na matriz de cobre, removendo com a tarlatana o excesso de tinta.

    A cópia não ficou boa. Retornei ao meu processo e fiz a limpeza final com a palma da mão e a cópia ficou boa, com todos os detalhes da imagem produzida, tudo no lugar certo.

    No dia seguinte, chego no meu ateliê e encontro um bilhete escrito pelo Iberê me convidando para trabalhar como seu impressor. Comecei a trabalhar diariamente e estabelecemos uma troca, ele me passava material e conhecimento e eu, a mão de obra, preparando matrizes, gravando com mordentes e fazendo edições.

    Iberê, antes de começar a sessão de pintura, no andar acima do ateliê de gravura, deixava sobre a "mesa-palheta" a matriz preparada com verniz para água-forte e, então, traçava rapidamente com a ponta de metal o desenho. Eu descia, dava o banho de ácido aprofundando o desenho na matriz, tirava a cópia e ficava à sua espera.

    Logo veio o primeiro convite para jantar após a jornada de trabalho. Adentrando na sala de jantar, reparei a mesa redonda com quatro lugares. Não sabia de quem era o quarto lugar. Sentamos eu, dona Maria –sua mulher– e Iberê.

    Quando fomos servidos com um perfumado peixe, saltou na cadeira um gato que se apoiou com as duas patas dianteiras em volta do prato colocado especialmente para ele. Iberê fez uma saudação e o gato respondeu com um rosnado e miado forte. Parecia que os dois se entendiam muito bem. Tomamos vinho. Iberê começou a recitar uma passagem de "Inferno", de Dante Alighieri, em italiano. O nome do gato era Martim.

    EDUARDO HAESBAERT, 46, desenhista e artista plástico, está em cartaz na filial paulistana da Bolsa de Arte de Porto Alegre com a individual "Negro de Fumo" até 25/7.

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