• Ilustríssima

    Monday, 06-May-2024 17:01:26 -03

    Diário de Caracas - São João chavista

    SAMY ADGHIRNI

    05/07/2015 02h05

    Dia desses recebi convite para passar um dia no litoral com um alto dirigente do governo venezuelano. Gente grande, do primeiro escalão chavista. O funcionário queria reunir um punhado de correspondentes estrangeiros para mostrar a festa de São João de sua cidadezinha natal, a uma hora de carro de Caracas. Em seguida, receberia os jornalistas em sua casa. Puro marketing.

    Mas, num país onde a mídia estrangeira quase não tem acesso ao governo, uma oportunidade dessas não poderia ser desperdiçada. A experiência acabou sendo uma das mais eloquentes para entender como pensam e quem são os donos do poder na Venezuela.

    Estava implícito que conversas sobre política e economia não seriam usadas como entrevista formal. É o famoso "off the record", no jargão jornalístico.

    Éramos uma dúzia de repórteres estrangeiros. Chegamos às 9h30, quando a população se aglomerava em volta da igreja da humilde região, espremida entre o mar do Caribe e os verdejantes montes que costeiam o litoral. No meio do povo estava o membro do governo, de camisa vermelha, boné e óculos Ray-Ban escuros, jogando dominó com amigos.

    Rojões marcaram o início da cerimônia, na qual uma miniestátua de São João foi carregada pelas ruas, num êxtase carnavalesco cheirando a suor e cerveja, ritmado por um batuque alucinante. O chavista dançava e tomava tragos como peixe na água no meio dos seus, que o cumprimentavam com abraços e beijos e o chamavam pelo primeiro nome. Os seguranças, à paisana, acompanhavam de longe, quase invisíveis.

    PAPO RETO

    O primeiro papo sério rolou durante o almoço, num boteco de praia. O figurão admitiu que a situação econômica é crítica e que o chavismo continua dividido entre pragmáticos e ortodoxos. Questionado sobre o porquê de o governo não soltar cifras econômicas desde 2014, alegou divergências de cálculo entre órgãos oficiais. Perguntamos o que o governo fará para reverter a crise e ouvimos respostas genéricas do tipo "atrair investimentos" ou "incentivar a produção". Segundo ele, tudo é "muito simples".

    Sobre o escândalo na Odebrecht, parceira do chavismo em muitas das maiores obras da Venezuela, ele disse que o Brasil está estremecido porque "abriram a caixa de pandora da indústria petroleira". A Venezuela também tem caixa de pandora? "Provavelmente, mas não foi aberta", gargalhou o governante, que disse ter saudade da era Chávez-Lula.

    FARRAS

    Ele contou anedotas, como a vez em que foi flagrado por Chávez no Brasil, em plena viagem presidencial, voltando ao hotel às 6h, após uma noite de farra. "Levei reprimenda do comandante."

    O dirigente fez circular o smartphone entre jornalistas para mostrar a selfie de uma moça, aparentando menos da metade de sua idade, fazendo biquinho insinuante. "Minha namorada", gabou-se.

    A toda hora um morador interrompia o almoço do chavista. Um queria saber como andava "aquele projeto de cooperativa". Outro pediu que lhe pagasse uma sopa de peixe. Uma mulher apresentou sua filha, morena de 20 anos, que cantou uma música romântica para ele. Vozeirão o da moça.

    SALSA E TENSÃO

    Já era meio da tarde quando chegamos ao terraço da casa do figurão, erguida sobre um morro que domina uma favela de ruas íngremes e apertadas. Bebida à vontade, lulas fritas e salsa a todo volume. No banheiro, papel higiênico abundante –um luxo nestes tempos de escassez.

    Quando o álcool e o sol na cuca já entortavam as falas, voltou-se a conversar sobre política. Um correspondente europeu disse que nenhum país sério esconde estatísticas. O chavista não gostou. No bate-boca, o gringo exigiu "respeito", enfurecendo ainda mais o governante, que o xingou e por pouco não o esmurrou. Os guarda-costas se aproximaram. Nem a reaparição da mocinha cantora, requebrando no microfone, bastou para acalmar o ambiente sufocado de tensão. Fomos embora.

    Pouco depois, uma jovem jornalista que estava no grupo recebeu uma mensagem de texto do governista: "Oi, tudo bem?".

    SAMY ADGHIRNI, 36, é correspondente da Folha em Caracas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024