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    O comércio ilegal de arte e o dilema ético dos museus universais

    KANISHK THAROOR
    DO "GUARDIAN"

    05/07/2015 02h10

    Cada mês que passa surgem novos casos de "repatriação" de antiguidades de museus americanos a seus países de origem.

    No final de maio as autoridades italianas expuseram 25 artefatos saqueados recuperados dos Estados Unidos. Entre eles havia alguns objetos contrabandeados pelo infame traficante Giacomo Medici, condenado em 2004 pela venda de milhares de objetos de arte greco-romana roubados da Itália e do Mediterrâneo. Algumas semanas antes disso, o Museu de Arte de Cleveland tinha devolvido ao Camboja uma estátua do século 10 do deus hindu Hanuman. O ídolo tinha sido arrancado do tempo de Prasat Chen, em Siem Reap, na década de 1960, chegando ao museu de Cleveland em 1982 ao final de um périplo pelas mãos de uma sequência de traficantes.

    Em abril, agentes do Departamento de Segurança Interna confiscaram do Museu de Arte de Honolulu sete artefatos antigos da Índia que teriam sido adquiridos por intermédio do marchand Subhash Kapoor, de Nova York.

    Atualmente detido sob custódia policial na Índia, Kapoor comandava uma enorme operação criminal cujo âmbito pleno as autoridades ainda estão tentando entender. Uma investigação em curso chamada Operação Ídolo Oculto se estende por quatro continentes e procura desvendar a rede de Kapoor. Durante décadas o marchand encaminhou a colecionadores particulares e grandes museus do Ocidente antiguidades roubadas da Índia e do sudeste asiático no valor de US$ 100 milhões (ou possivelmente mais).

    Samrang Pring - 12.mai.15/Reuters
    Primeiro-ministro do Camboja com a estátua do deus Hanuman. Roubada de tempo cambojano, a estátua foi devolvida ao país pelo museu de Cleveland, nos EUA.
    Primeiro-ministro do Camboja com a estátua do deus Hanuman. Roubada de tempo cambojano, a estátua foi devolvida ao país pelo museu de Cleveland, nos EUA.

    Algumas das grandes instituições americanas ligadas a Kapoor incluem o Museu Metropolitano de Arte, em Nova York, o Instituto de Arte, em Chicago, e o Museu Asiático de Arte, em San Francisco.

    A Operação Ídolo Oculto intensificou a pressão sobre os museus americanos para que se certifiquem de que seus acervos não incluam artefatos adquiridos de modo ilegal. Nos últimos dez anos, coleções públicas que incluem o Museu Getty, em Los Angeles, e o Met (Metropolitan Museum of Art) já devolveram centenas de objetos obtidos de modo irregular. Quando adquiriram esses objetos, os museus deixaram de tomar os cuidados devidos para determinar a autenticidade e proveniência dos objetos. Eles perderam milhões de dólares com isso.

    Mas não são apenas os prejuízos financeiros que preocupam curadores e diretores de museus. As manchetes geradas por esses escândalos colocam em risco os próprios esforços feitos pelos museus ocidentais para adquirir artefatos. As reivindicações crescentes de repatriação dificultam o projeto de construção de instituições "universais" que apresentam a arte e a história do mundo.

    Há ocasiões em que essas reivindicações têm pouca relação com o comércio ilícito. Escrevendo no "New York Times", Hugh Eakin criticou as táticas coercivas usadas por países como Turquia, Grécia e Itália, descritos como "ricos em arte". "As relações de museus com governos estrangeiros passaram a depender cada vez mais de os museus cederem a exigências sem sentido e às vezes abertamente extorsivas", ele escreveu. À medida que China e Índia elevam seu perfil no palco geopolítico, crescem as reivindicações chinesas e indianas de restituição de artefatos em mãos do Ocidente; muitas vezes as reivindicações são feitas por indivíduos e grupos privados, não por governos.

    A consequência é que os defensores dos museus hoje creem que seus acervos diversificados e cosmopolitas estão sendo assediados por governos e grupos dotados de agendas nacionalistas. Os críticos dos museus ocidentais acusam as instituições de cumplicidade no comércio ilícito e, de forma mais ampla, de perpetuar as desigualdades agudas entre o Ocidente e o resto do mundo.

    De acordo com Jason Felch, autor de "Chasing Aphrodite: The Hunt for Looted Antiquities at the World's Richest Museum", "os museus dos EUA demoraram a tomar consciência da realidade do comércio ilícito". Ele enxerga um paralelo entre o comércio de antiguidades e o tráfico de drogas: é a demanda dos países ocidentais que possibilita as duas coisas. "Enquanto houver um mercado lucrativo de bens saqueados, de objetos de origem incerta, haverá um comércio ilícito de antiguidades."

    A advogada Tess Davis, da Antiquities Coalition, elogiou o Museu de Arte de Cleveland pela devolução voluntária da estátua de Hanuman, mas argumentou que o artefato nunca deveria ter entrado para o acervo do museu, em primeiro lugar. "A estátua de Hanuman apareceu no mercado quando o Camboja estava em guerra, enfrentando um genocídio", ela explicou. "Como alguém poderia ignorar que era propriedade roubada? A única resposta é que ninguém quis saber."

    Os museus americanos são em grande medida autorregulamentados, embora muitos subscrevam às diretrizes mais rígidas adotadas em 2008 pela Associação Americana de Diretores de Museus, que regem a aquisição de materiais arqueológicos. Raramente os museus foram forçados por decisões legais a abrir mão de artefatos; ao invés disso, eles voluntariamente, e às vezes de modo preventivo, devolveram objetos de origem incerta que faziam parte de suas coleções.

    Graham Barclay - 06.fev.2006/Bloomberg
    Visitante caminha ao lado de estátuas gregas retiradas do Panteão, no British Museum, em Londres.
    Visitante caminha ao lado de estátuas gregas retiradas do Parthenon no Museu Britânico, em Londres.

    "Ninguém quer promover o comércio ilegal", disse James Cuno, CEO da Fundação Getty e grande proponente dos museus universais. "Os colecionadores precisam tomar muito cuidado com a autenticidade dos objetos e a legalidade das transações."

    Mas Cuno receia que os museus universais no Ocidente enfrentem um desafio mais profundo lançado por nacionalistas de todo o mundo. Os governos e os museus nacionais de seus países frequentemente expressam seus pedidos de repatriação de artefatos em termos de "reparação da integridade da nação". Para Cuno, essas reivindicações são mais teatrais que morais; elas teriam o objetivo de fazer a propriedade cultural "ser uma questão de política e da agenda política das elites governantes".

    Na visão dele, o museu universal continua a ser o melhor contexto no qual engajar-se com a arte. "As obras de arte não aderem às fronteiras políticas modernas", ele explicou. "Elas sempre buscaram conectar-se alhures com coisas estranhas e maravilhosas."

    A destruição que o Estado Islâmico vem cometendo de sítios da antiguidade no Oriente Médio reforçou os argumentos em favor do museu universal, com figuras como Gary Vikan, o ex-diretor do Walters Art Museum, de Baltimore, argumentando que apenas instituições do Ocidente são capazes de preservar o legado cultural mundial. As atrocidades do EI "vão acabar com a boa-vontade excessiva em relação ao modelo de repatriação", ele disse ao "New York Times".

    Vista desde outra perspectiva, essa defesa soa como privilégio ocidental. "O colonialismo está vivo e forte no mundo da arte", comentou Davis. "Os chamados líderes dessa área continuam a justificar o fato de conservarem artefatos saqueados, dizendo que com isso enchem seus 'museus universais' onde visitantes podem ver coleções enciclopédicas de todo o mundo. É uma ideia nobre, na teoria, mas na prática é um luxo ocidental. Os cidadãos de Nova York, Londres e Paris podem se beneficiar, mas e os de Phnom Penh? Nunca."

    Felch, que passou anos investigando as práticas e aquisições de instituições como o Museu Getty, entende a história problemática dos museus universais no Ocidente, mas ainda assim enxerga grande valor no caráter enciclopédico deles. "Muitos acervos foram montados na época colonial, mas não pretendo investir contra moinhos e tentar desconstruir a história", ele disse. "Eu queria que houvesse museus enciclopédicos em outros lugares do mundo." Ele sugere que os muitos museus ocidentais grandes e fartamente dotados de recursos devem ajudar a facilitar empréstimos e trocas com museus de outras partes do mundo.

    Embora discorde de Felch sobre outros pontos, Cuno concorda que instituições como a sua têm uma missão global. "Qualquer museu que defenda o cosmopolitismo e a diversidade cultural tem a obrigação de encorajar o acesso em todo o mundo", ele comentou. "Não há razões para pensar que as pessoas em outras regiões não tenham curiosidade em relação ao mundo."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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