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    Tributo de Obama aos mortos de Charleston exalta o arco da história

    MICHIKO KAKUTANI
    DO "NEW YORK TIMES"

    08/07/2015 15h47

    O tributo póstumo de Barack Obama à reverenda Clementa Pinckney, da Igreja Episcopal Metodista Africana Emanuel em Charleston, Carolina do Sul, foi notável não só porque o presidente cantou a primeira estrofe de "Amazing Grace" em uma cerimônia televisionada ao vivo e não só por sua eloquência ao celebrar a pastora e outros oito paroquianos mortos por um atirador branco. Foi notável também por ter aproveitado todos os dons de oratória, empatia e curiosidade intelectual de Obama -vislumbrados inicialmente em "Dreams From My Father", livro de 1995 no qual ele tratava de modo comovente de questões de família e identidade. E porque o tributo empregou todos esses dons para falar sobre a complexidade de questões raciais e de justiça, situando-as em um contínuo temporal que ecoa e reflete tanto a visão profunda de Obama sobre a história quanto sua visão panorâmica sobre os Estados Unidos, compartilhada por Abraham Lincoln e Martin Luther King, como um país que vive em processo de autoaperfeiçoamento.

    A visão de Obama sobre a história do país como uma jornada de mais de dois séculos para tornar concretas para todos as promessas da Declaração de Independência ("que todos os homens foram criados iguais"), sugeriu em e-mail Jon Favreau, que trabalhou como redator de discursos para o presidente, é "tanto um sentimento religioso quanto um sentimento americano" -baseado na crença de que pecadores individuais e um país maculado pelo pecado original da escravidão podem superar o passado por meio de esforços "corajosos, persistentes, e ocasionalmente frustrados".

    Brian Snyder - 26.jun.15/Reuters
    Barack Obama canta "Amazing Grace" durante tributo à reverenda Clementa Pinckney em Charleston, na Carolina do Sul
    Barack Obama durante tributo à reverenda Clementa Pinckney em Charleston, na Carolina do Sul

    Para Obama, os Estados Unidos são "uma constante obra em progresso", uma nação fundada na ideia de recomeços e da crença persistente, como ele escreveu em um ensaio sobre Lincoln, de que "nós nos recriamos constantemente a fim de nos enquadrarmos aos nossos maiores sonhos". Como seus dois comoventes discursos em Selma, Alabama, em 2007 e este ano, o tributo de Obama a Pinckney usou o prisma da história para amplificar e cristalizar o significado da ocasião -uma lente grande angular que nos faz recordar a distância que percorremos desde os dias da escravidão, da segregação e do apartheid, e a distância que ainda temos a percorrer para resolver os preconceitos e iniquidades que persistem.

    Trata-se de temas que animaram a escrita e oratória de Obama por anos, remontando ao seu discurso na convenção presidencial do Partido Democrata em 2004 e ao seu discurso sobre "Uma União Mais Perfeita", em 2008, e chegando ao seu discurso de 2013 celebrando a Marcha a Washington do movimento dos direitos civis em 1963. A história, ele acredita, é uma odisseia, uma travessia, uma prova de revezamento na qual as realizações de uma geração servem de ponto de partida para a jornada da seguinte.

    No seu tributo póstumo de 26 de junho, Obama falou sobre a história da "Mãe Emanuel", em Charleston, sobre como uma igreja "construída por negros que buscavam liberdade" foi "destruída em um incêndio porque seus fundadores queriam pôr fim à escravidão", e sobre como ela se reergueu, "como uma fênix de suas cinzas", para se tornar um lugar sagrado, de cujo púlpito King viria a pregar. Ele falou sobre como a história "precisa servir de manual" para evitar "a repetição dos erros do passado" enquanto construímos "uma estrada rumo a um mundo melhor".

    Contemplar aquilo que foi superado e olhar na direção de um amanhã melhor é uma tradição sólida nas igrejas negras -as quais, tendo testemunhado grandes sofrimentos, sempre mantiveram seu olhar na terra prometida que as aguardava mais adiante. E também é um tema fundamental nos sermões de King, que em seu grande discurso "I Have a Dream" falou em talhar "dessa montanha de desespero uma pedra de esperança", e de transformar "a dissonância ruidosa de nossa nação em uma bela sinfonia de irmandade". Obama, como King, gosta de citar as palavras de Theodore Parker, pastor e abolicionista do século 19: "O arco do universo moral é longo, mas ele se dobra na direção da justiça".

    Ao lidar com as feridas da guerra civil, Lincoln também contemplou o amplo panorama da história e a lição das escrituras -tanto em busca de consolação quanto como maneira de enquadrar e universalizar seus argumentos. No discurso de Gettysburg, ele efetivamente redefiniu a visão dos fundadores dos Estados Unidos e a maneira pela qual lemos a constituição e a declaração de independência, e no discurso de sua segunda posse ele reconheceu o pecado da escravidão e o tremendo flagelo da guerra e, ao mesmo tempo, tentou "tratar as feridas do país", a fim de encontrar um caminho rumo ao futuro "com malevolência em relação a ninguém e com caridade para todos".

    O discurso da segunda posse de Lincoln estava na mente de Cody Keenan, o principal redator dos discursos de Obama, quando ele preparou o primeiro rascunho para o tributo que o presidente faria em Charleston. Ele conversou com o presidente sobre o discurso em 22 de junho, e sua esperança era emular o tom de reconciliação e de busca de cura empregado por Lincoln. Como muitos dos elogios fúnebres clássicos, a narrativa começa honrando os mortos e em seguida trata das tarefas que resta aos vivos executar: exortando a congregação e a nação, como disse Lincoln, a "concluir o trabalho em que estamos envolvidos".

    Um rascunho do tributo foi entregue ao presidente por volta das 17h de 25 de junho, e, de acordo com Keenan, Obama passou cerca de cinco horas revisando o texto naquela noite, não só fazendo anotações de margem mas apanhando os blocos amarelos nos quais gosta de escrever. O presidente viria a reescrever grandes porções do texto -apenas a segunda vez que ele o fez nos últimos dois anos.

    Obama expandiu uma menção curta do rascunho sobre a ideia de graça, e fez dela um dos temas centrais do discurso: a graça que os familiares das vítimas souberam expressar, incorporada em seu perdão ao assassino; a graça que a cidade de Charleston e o Estado da Carolina do Sul manifestaram na união encontrada depois do massacre; a graça conferida por Deus ao transformar uma tragédia em ocasião de renovação, o pesar em esperança.

    Jewel Samad - 28.ago.13/AFP
    Barack Obama e a primeira-dama Michelle Obama participam de cerimônia de comemoração aos 50 anos da "Marcha sobre Washington" em frente ao memorial de Abraham Lincoln, em 2013.
    Barack Obama e a primeira-dama Michelle Obama participam de cerimônia de comemoração aos 50 anos da marcha a Washington em frente ao memorial de Abraham Lincoln, em 2013.

    Como fez em seus melhores escritos do passado, Obama aproveitou seu conhecimento pessoal da Bíblia, de literatura e de história -da mesma forma que Lincoln e King faziam em seus escritos -a fim de criar uma narrativa musical que usa alusões históricas e bíblicas a fim de ampliar as dimensões de sua narrativa, alternando entre o vernáculo e o metafórico, entre questões específicas (as desigualdades do sistema de justiça criminal, a necessidade de controlar a venda de armas, a dor e o ódio que a bandeira de batalha confederada representam) e imperativos morais e espirituais mais elevados.

    Ele também usou versos de seu hino favorito, "Amazing Grace", como refrão, e, a caminho de Charleston no helicóptero presidencial, disse aos assessores que poderia cantar alguns dos versos, "se me parecer correto".
    E sem dúvida pareceu correto. Obama, agora no quarto final de sua presidência, vem expressando com cada vez mais firmeza e franqueza suas ideias sobre as questões que lhe são mais caras. Em recente entrevista no podcast do humorista Marc Maron, ele falou de como a experiência e o "destemor" que surge depois de ter sobrevivido a "descer as cataratas do Niágara em um barril" lhe trouxeram um senso de libertação. Ao mesmo tempo, o tributo póstumo que ele fez naquela tarde de sexta-feira em Charleston provou ser o momento mais alto de uma semana estonteante e momentosa na qual políticos sulistas começaram a apelar pela renúncia à bandeira de batalha confederada, e a Corte Suprema confirmou a Lei de Acesso a Saúde e decidiu que a constituição garante o direito ao casamento homossexual.

    Foi uma semana na qual muitos norte-americanos sentiram estar assistindo em pessoa ao arco da história, e o tributo do presidente tanto serviu ao momento quanto o conectou ao passado e o futuro daquilo que Obama chama de "a grande experiência americana".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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