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    Palavrório "transestético"

    MARCELO COELHO

    12/07/2015 02h02

    RESUMO Em novo livro, o filósofo Gilles Lipovetsky e o crítico Jean Serroy tratam da estetização do mundo, processo que querem fazer crer ser recente, mas que vem desde, pelo menos, o século 19. Eles criam termos como hipermodernidade e consumo transestético no intuito frustrado de ir além da arte e tratar da sociedade.

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    O modelo clássico da garrafa de Coca-Cola foi criado em 1915, por uma equipe de designers da Root Glass Company, de Terre Haute, no Estado americano de Indiana. Os gomos da garrafa haviam sido copiados de um livro ilustrando a casca de um cacau; já sua forma acinturada e feminina evoluiu, como se sabe, ao longo do tempo.

    A ideia era produzir uma embalagem que não se confundisse com a de outros produtos equivalentes; mas, sem dúvida, não foi só pela originalidade que o modelo fez tanto sucesso. O prazer e o conforto que oferece ao tato, além da alegria visual provocada pelo jogo de seus fustes verticais de vidro, certamente contribuem para completar a "Coke experience", a "experiência Coca-Cola" do seu feliz consumidor.

    Bem antes da invenção dessa garrafa, artistas e designers se encarregavam de tornar mais atraentes as embalagens, os anúncios, os equipamentos usuais do cotidiano. Quem não conhece os pôsteres de Alphonse Mucha (1860-1939) para os biscoitos, cervejas e champanhes da Belle Époque? No mesmo estilo "art nouveau", Hector Guimard (1867-1942) desenhou, por volta de 1900, uma série de estações de metrô que até hoje é atração turística em Paris.

    O pensador Gilles Lipovetsky e o crítico Jean Serroy conhecem esses exemplos, é claro. Mesmo assim, julgam ter identificado uma nova fase no desenvolvimento capitalista –marcada, antes de tudo, pela predominância do "artístico".

    Em "A Estetização do Mundo - Viver na Era do Capitalismo Artista" [trad. Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 472 págs., R$ 62,90] os dois autores notam que o mundo da arte deixou de estar em guerra com a sociedade burguesa. Os fenômenos estéticos "não remetem mais a mundinhos periféricos e marginais: integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos bens materiais, eles constituem imensos mercados modelados por gigantes econômicos internacionais".

    Suzanne Plunkett - 19.jun.15/Reuters
    Homem diante das telas "Dollar Sign" e "Dollar Signs" (1981) na Sotheby's de Londres; em leilão dia 1º/7, elas foram vendidas por cerca de R$ 23 milhões e R$ 34 milhões, respectivamente
    Homem diante das telas "Dollar Sign" e "Dollar Signs" (1981) na Sotheby's de Londres; em leilão dia 1º/7, elas foram vendidas por cerca de R$ 23 milhões e R$ 34 milhões, respectivamente

    É o triunfo do "capitalismo artista", que "lança continuamente modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, as emoções"; um universo de "superabundância ou de inflação estética" se molda diante de nossos olhos. Temos "um mundo transestético, uma espécie de hiperarte, em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida comum".

    Não é difícil encontrar sinais desse processo. Os jardineiros, lemos em "A Estetização do Mundo", transformaram-se em "paisagistas"; um arquiteto como Frank Gehry é "celebrado em toda parte como um arquiteto artista", e "até certos homens de negócio são pintados como artistas visionários (Steve Jobs)".

    A importância do design para a sociedade de consumo e o desenvolvimento da indústria cultural oferecem, é claro, material para uma lista quase infinita de exemplos. Mas será que estamos diante de um fenômeno tão novo, tão revolucionário, como querem crer Lipovetsky e Serroy?

    O DE SEMPRE

    Afinal, o costureiro Charles Worth (1825-95) –o inventor dos desfiles de moda–, já se apresentava como artista. Antes de Frank Gehry, o arquiteto Le Corbusier (1887-1965) podia perfeitamente se apresentar como pintor, escultor e designer. E chamar Steve Jobs de "artista visionário" funciona mais como metáfora, como força de expressão, do que como prova de que a estetização dos bens de consumo atingiu uma nova etapa nos dias de hoje.

    Mas Lipovetsky e Serroy não desistirão da tese –que lhes fará preencher mais de 400 páginas com um palavrório supostamente "crítico". Vale a pena identificar algumas de suas características, que não são exclusividade de Lipovetsky, aliás.

    Em primeiro lugar, esse tipo de ensaio cultural adora as periodizações de largo voo. "A Estetização do Mundo" começa, assim, dividindo a história da humanidade em quatro grandes fases, conforme as relações que se estabelecem entre arte e sociedade.

    Tomemos então as "sociedades ditas primitivas" –mas os autores usam o "ditas" à toa, tratando-as como primitivas mesmo. Lá, a arte não tem existência separada, tudo se faz em obediência às tradições rituais. Viramos a página, e já estamos nas sociedades de corte do século 18, em que a arte serve à glória dos príncipes. Grécia, Roma, Idade Média, Oriente, nada disso precisa ser levado em conta no raciocínio dos autores.

    Segue-se o momento moderno, com a autonomia do artista, a oposição vanguardista radical entre arte e comércio, a crítica ao artesanato decorativo e ornamental. Essa oposição estaria agora encerrada, e a arte se mistura ao consumo.

    O raciocínio poderia fazer sentido se pensarmos no modo como alguns artistas se veem a si mesmos –e de que modo a ideia de uma vanguarda revolucionária cedeu espaço a atitudes mais conciliadoras, moderadas ou "pós-modernas".

    A ambição de Lipovetsky e Serroy é outra, contudo. Querem falar da sociedade em geral, e não da arte pós-moderna. Como o termo está fora de moda, aliás, eles inventam outros –sociedade do hiperconsumo, hipermodernidade, era do consumo transestético...

    O problema é que, quando buscam exemplos dessa estetização no cotidiano, os autores começam a encontrar precedentes cada vez mais antigos do fenômeno que proclamam. Toda a periodização proposta cai por terra, e o sensacionalismo do livro se revela.

    A arte agora se liga ao comércio, constatam Lipovestsky e Serroy, com uma espécie de ponto de exclamação oculto (!), deixando o pasmo e o escândalo a cargo do leitor. Só que, no mesmo parágrafo, citam uma frase de Paul Valéry reforçando a tese –e a frase é de 1928. "Estamos numa época em que o consumidor se tornou um colecionador de experiências", dizem os autores, citando Alvin Toffler –num livro de 1971.

    Não há como deixar de recorrer, então, a um velho truque da "crítica cultural". É a expressão "cada vez mais". Sim, tudo isso já existia, mas acontece que "cada vez mais"... etc etc.

    Trivialidades se repetem, então, o tempo todo, como se o livro estivesse sendo ditado em voz alta. "A meta não é a elevação espiritual do homem... a arte de consumo de massa só existe voltada para a sedução dos consumidores" (pág. 71). "O divertimento não é mais um domínio marginal e separado, ele se tornou um setor econômico fundamental, uma indústria transestética que cresce a cada dia" (p. 270). "Os castelos e as catedrais, as obras-primas da arquitetura mundial são visitadas por milhões de turistas" (p. 377). Ah.

    A diferença entre a sociedade de consumo dos anos 1950 e a época do "hiperconsumo" se torna, no fundo, uma questão de grau. Para dar ideia do que chamam de "fase três do capitalismo artista", os autores disparam rajadas de informação: "Em 1990, a Seiko oferecia a cada mês sessenta novos modelos de relógio". Nunca antes se fizeram tantos modelos de relógio, portanto. Será que basta para fazer o diagnóstico de uma época?

    No caso mais flagrante desse tipo de distorção cronológica, aponta-se para o fato de que a "sociedade do hiperespetáculo" é marcada pela hipertrofia, pelo excesso, pelo gigantismo. Exemplo? As torres altíssimas de Burj Khalifa, em Dubai, e outras projetadas na Arábia Saudita e na China. Mas seriam menos hipertróficos e gigantes, em seu tempo, os arranha-céus de Nova York?

    "A Estetização do Mundo" se torna inconvincente porque procede sempre pela acumulação de exemplos. Nunca se ponderam argumentos que poderiam contrariar a tese apresentada. Não se discute a vasta bibliografia que já tratou do tema –no máximo, coloca-se entre parênteses o nome de algum autor ao qual se faz alusão. Não se tenta, a não ser de modo muito rápido, no final do livro, apontar para os limites, as contradições, o potencial de crise e de colapso no quadro retratado.

    Tudo se registra impressionisticamente, em "flashes" que parecem, ao mesmo tempo, dizer que "isso é o fim do mundo", e que "tudo é cada vez mais o que sempre é". Com seu jogo de slogans, prefixos e rótulos –hipermodernidade transestética do pós-consumo, esse tipo de coisa–, os autores mostram mais talento publicitário do que profundidade.

    MARCELO COELHO, 56, é colunista da Folha.

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