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    Livro de David E. Hoffman relembra um espião voluntário da Guerra Fria

    SCOTT SHANE
    DO "NEW YORK TIMES"

    12/07/2015 02h15

    Em uma era de atentados suicidas e decapitações cometidas pelo Estado Islâmico, os dramas de espionagem da Guerra Fria podem parecer histórias inofensivas, quase bem comportadas. Agentes da CIA que trabalhavam na capital soviética se queixavam de operar sob as "regras de Moscou", ou seja, sob o olhar implacável da KGB. E sabiam que qualquer cidadão soviético flagrado espionando enfrentaria a execução certeira. Mesmo assim, havia regras.

    Essas regras talvez sejam a razão por que "The Billion Dollar Spy" (O espião de 1 bilhão de dólares; sem lançamento previsto no Brasil), de David Hoffman, é uma história tão fascinante. O livro é sobre Adolf Tolkachev, especialista soviético em radares que espionavam para a CIA. A história aconteceu ao longo de vários anos, quase inteiramente nas ruas de Moscou, numa partida de xadrez à meia-luz que opunha agentes de inteligência americanos a seus colegas soviéticos. Cada lado sabia exatamente o que o outro estava tentando fazer e estava determinado a frustrar os esforços do outro.

    E no meio dos dois lados estava Tolkachev, engenheiro eletrônico de 50 e poucos anos, um homem de modos modestos mas vontade férrea, determinado a causar o máximo possível de danos à União Soviética. Seu trabalho lhe proporcionava acesso a detalhes altamente sigilosos de tecnologia militar, algo cobiçado pelos Estados Unidos. O título "The Billion Dollar Spy" faz referência aos custos de pesquisa e manufatura poupados pelos EUA graças às revelações feitas por Tolkachev entre 1978 e 1985; o dinheiro poupado na realidade foi estimado em mais de US$2 bilhões.

    A história de Tolkachev já foi contada antes, notavelmente em uma monografia da CIA e no livro épico de 2003 "O Grande Inimigo - CIA e KGB", do ex-agente da CIA Milton Bearden e do jornalista James Risen, do "New York Times". Mas nunca antes foi relatada com tantos detalhes. Ex-correspondente do "Washington Post" em Moscou e autor de "The Dead Hand", de 2009, sobre os últimos anos da corrida armamentista entre EUA e União Soviética, Hoffman contou com a ajuda de veteranos da CIA ansiosos por reviver os bons velhos tempos. Mais importante ainda, a agência compartilhou com ele 944 páginas de documentos desclassificados, incluindo os telegramas trocados entre a sede da CIA e sua estação dentro da Embaixada dos Estados Unidos em Moscou.

    Tolkachev deve ter sido o espião voluntário mais determinado da história. Ao longo de mais de um ano, correndo risco pessoal enorme, ele observou os carros de diplomatas americanos e enfiou bilhetes nas janelas, oferecendo seus serviços de espião aos motoristas perplexos. Os americanos ignoraram seus esforços, temendo que ele fosse um agente da KGB enviado para tentar enredá-los. A CIA só mordeu a isca depois que Tolkachev lhes deu 11 páginas escritas à mão com informações que incluíam seu nome completo, descrição de seu trabalho e informações sobre sua família.

    Como frequentemente é o caso na espionagem, com sua combinação de traição aberta e lealdades reais, uma questão intrigante era a motivação de Tolkachev. As possibilidades tradicionais eram dinheiro, ideologia, concessões (ou seja, chantagem) e ego. Tolkachev parece ter sido movido por todos esses fatores, menos o das concessões.

    O sofrimento hediondo de seus sogros sob o governo de Stálin era uma razão de seu desejo ardente de vingança. E Tolkachev estava profundamente desiludido com o que ele chamava de "demagogia hipócrita", da qual, para ele, a União Soviética era representante.

    Ele disse a seu primeiro contato na CIA que era "dissidente de coração". Em uma de suas cartas longas escritas à CIA, muitas vezes em tom introspectivo, explicou que os exemplos de Aleksandr Solzhenitsyn e Andrei Sakharov o tinham inspirado. "Um verme interior começou a me atormentar", ele explicou. "Alguma coisa precisava ser feita."

    Mas ele também queria dinheiro, muito dinheiro, deixando seus contatos na CIA perplexos pelo fato de simultaneamente pedir milhões e dizer que tinha pouco o que fazer com o dinheiro. Tolkachev parecia enxergar o dinheiro capitalista como uma medida palpável de sua própria importância, a confirmação de que ele não era simplesmente mais um tecnocrata pouco interessante, mas uma pessoa fora do comum.

    Em troca, ele entregou aos EUA milhares de documentos ultrassecretos, geralmente tirados de seu instituto na hora do almoço, levados para casa e fotografados com uma câmera Pentax presa a uma cadeira. Em outras ocasiões ele se escondia no banheiro masculino de seu local de trabalho e usava uma câmera Tropel da CIA oculta em um chaveiro.

    Em seguida, ele tinha que encontrar os agentes da CIA para lhes entregar os filmes e peças eletrônicas furtadas. Em uma Moscou cheia de vigilância, a tarefa exigia não apenas coragem sua, mas também astúcia da parte dos agentes da CIA. O livro de Hoffman se destaca especialmente nos relatos quase cinematográficos desses encontros carregados de ansiedade.

    O autor escreve que os contatos com Tolkachev eram realizados "com a concentração e a atenção aos detalhes que caracterizam uma filmagem da Lua". Os agentes da CIA perceberam que conseguiam identificar carros de vigilância porque o lava-jato da KGB deixava um triângulo peculiar de sujeira na grade do radiador. Eles estudaram como operar na "brecha" -os momentos em que um carro ou uma pessoa virava uma esquina e desaparecia de vista por alguns instantes. Usavam o "jack-in-the-box" -uma imagem em cartão do agente da CIA, acionada por mola, que subia e tomava o lugar do agente quando este saltava do carro. Em muitos casos o carro era conduzido pela mulher do agente; a ousadia e paciência das esposas de agentes da CIA são um tema recorrente no livro.

    Enquanto isso, o chefe da CIA em Moscou com frequência travava uma batalha na retaguarda contra a sede da agência, em Langley, Virgínia. Os chefes em Langley rejeitaram durante muito tempo os pedidos urgentes feitos por Tolkachev da chamada "pílula L", uma dose letal de cianeto escondida em uma caneta, mesmo depois de os contatos dele terem decidido que ela lhe daria tranquilidade crucial. E a sede da CIA insistiu em lhe dar um novo aparelho de comunicações chamado Discus, passando por cima das objeções dos agentes na estação em Moscou.

    Um detalhe comovente que lemos em "The Billion Dollar Spy" diz respeito às coisas que Tolkachev pedia, além de dinheiro e livros proibidos. Como muitos casais soviéticos, ele e sua mulher, Natasha, tinham um filho em quem investiam todas suas esperanças. Oleg tinha 14 anos quando seu pai começou a espionar e compartilhava o fascínio dos adolescentes soviéticos pelo rock ocidental. Mais tarde, quando começou a estudar arquitetura, ele queria equipamentos decentes de desenho.

    Pondo sua vida em risco a cada vez que contatava a CIA, seu pai repetidas vezes pediu artigos que achou que agradariam a seu filho: um Walkman da Sony, álbuns do Led Zeppelin e Alice Cooper e "lápis de dureza variada". Para esse homem solitário e motivado -e, portanto, para a CIA também- essas coisas triviais adquiriram valor inestimável. Graham Greene acertou em cheio com o título que deu a seu grande romance de espionagem de 1978: a chave para entender a espionagem é sempre "o fator humano".

    Tradução de CLARA ALLAIN

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