• Ilustríssima

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    Trecho inédito do último livro do historiador Jacques Le Goff

    JACQUES LE GOFF
    tradução NÍCIA ADAM BONATTI

    19/07/2015 02h07

    RESUMO Morto em abril de 2014, o historiador Jacques le Goff lançara em fevereiro daquele ano o livro "A História Deve Ser Dividida em Pedaços?", que chega ao Brasil em agosto pela editora Unesp. No ensaio, do qual um trecho é aqui reproduzido, o medievalista reflete sobre a necessidade de dividir a história em períodos.

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    Com a periodização, o historiador formata uma concepção do tempo e simultaneamente oferece uma imagem contínua e global do passado, que acabamos por chamar "história".

    Em lugares cristãos, particularmente na Europa, duas concepções do tempo parecem a priori excluir qualquer periodização, apesar de a ela se submeterem. A primeira é a de uma corrente do tempo: Jean-Claude Schmitt realçou-a na iconografia do célebre saltério da rainha da França, Blanche de Castille, no início do século 13. Entretanto, uma corrente pode conter uma fragmentação em séries mais ou menos longas de elos e não se opõe, portanto, a um trabalho de periodização. A segunda abordagem, igualmente estudada por Jean-Claude Schmitt, é aquela proposta pela história santa. Ora, esta pode muito bem, como já foi feito na parte antiga do Antigo Testamento, fragmentar-se em períodos de tempo sucessivos, especialmente quando ao Pentateuco sucedem os livros proféticos ou propriamente históricos, tais como o livro dos Reis ou o livro das Crônicas.

    De fato, exceção feita ao tempo cíclico, que nunca ofereceu nenhuma teoria "objetiva" da história, todas as concepções do tempo são suscetíveis de serem racionalizadas e explicadas, tornando-se dessa maneira "história" e permitindo, tanto na memória das sociedades humanas quanto no trabalho do historiador, a elaboração de uma ou várias periodizações.

    Em geral, considera-se que a história ocidental tem duas origens: de um lado o pensamento grego, em particular a partir de Heródoto (século 5 a.C.), e de outro a Bíblia e os pensamentos hebraico e cristão. Aquilo que é atualmente a "história" constituiu-se em seguida de maneira lenta, primeiramente em saber particular, depois em matéria de ensino. Ora, essas duas evoluções são necessárias para que nasça a necessidade de fracionar a história em períodos.

    Roger-Viollet/AFP
    O historiador francês Jacques Le Goff
    O historiador francês Jacques Le Goff

    A constituição da história em saber particular foi tema de inúmeros trabalhos. Colocarei na fila da frente os trabalhos de Bernard Guenée. As obras que prefiguram a história como saber têm naturezas diversas, e seus autores, tipos diferentes. Ao lado do monge mergulhado na história da Igreja ou de seu convento, encontramos cronistas de corte, como Jean Froissart (1337?-1410?), ou o enciclopedista, como Vincent de Beauvais. Uma parte da produção histórica era escrita sobre rolos, e esse suporte evocava a continuidade do tempo.

    Nesse universo, o cronista era aquele que mais se aproximava do historiador tal como este é entendido na concepção moderna. Entretanto, quando as universidades foram fundadas –as primeiras universidades importantes no final do século 12 e no início do século 13, e para o conjunto da Europa até o final do século 15–, essa história em crônicas ainda não tinha como propósito ser ensinada. As coisas só foram se modificando, lentamente, entre o século 16 e o fim do século 18.

    ERUDITOS

    No século 17, os progressos da erudição (quer se tratasse da pesquisa, da constituição ou do tratamento das fontes históricas) ocupam um lugar central nessa evolução. Vários grandes eruditos surgiram então, dentre os quais dois franceses: o senhor Du Cange (1610-88), bizantinista e lexicógrafo que escreve especialmente um importante dicionário de latim medieval, "Glossarium Mediæ et Infimae Latinitatis" (1678), e dom Jean Mabillon (1632-1707), beneditino que trabalha sobretudo na abadia de Saint-Germain-des-Prés, às portas de Paris, e escreve, entre outras obras, "De Re Diplomatica" (1681), um tratado da ciência dos diplomas, das cartas, ligado a sua compreensão e a seu estudo, a paleografia. Um trabalho de erudição que caminha no mesmo sentido daquele de dom Mabillon foi realizado por um italiano, Lodovico Antonio Muratori, que publicou em latim os 28 volumes dos "Rerum Italicarum Scriptores" (1723-51).

    A difusão, nos séculos 17 e 18, desse saber relacionado principalmente com a Idade Média dá origem ao que Arnaldo Momigliano chamou de uma "revolução" do método: o amor pela verdade sentido pelo historiador passa, doravante, pela administração da prova. As diferentes periodizações baseiam-se desde então em sistemas de estabelecimento da verdade histórica.

    Contudo, para que a história se transforme em saber suscetível de ser recortado em períodos é preciso também que ela aceda ao ensino. Ensinada, a história não é mais simplesmente um gênero literário, ela amplia seu horizonte. E por certo as universidades que nascem na Europa a partir do fim do século 12 não propõem de imediato a história como matéria de ensino, mas desempenham um papel maior nessa evolução.

    Parece-me que, antes do século 12, não houve na França tentativas de ensinar a história. Em que pesem seus esforços, François de Dainville não consegue provar a existência dela nos colégios jesuítas.

    Annie Bruter mostra bem como no decorrer do século 17 a transformação dos sistemas de educação, numa vertente, e as práticas historiadoras, em outra, fazem entrar o ensino da história nas escolas, colégios e universidades. Podemos assim assinalar a integração da história na formação dos herdeiros reais. Bossuet, por exemplo, envia uma carta para o papa descrevendo a educação que ele ministra e faz ministrar ao Grande Delfim, filho de Luís 14. Certos editores e autores conseguem obter mais ou menos clandestinamente as informações sobre esse ensino delfinal e, por sua vez, publicam obras que plagiam ou desenvolvem esse programa.

    Da mesma forma, o ensino da história estende-se às crianças. Os pedagogos inserem em suas lições jogos, fábulas, narrativas, que permitem ensinar as bases da história associadas ao divertimento. Por exemplo, "L'Abrégé Méthodique de l'Histoire de France" [resumo metódico da história da França], de Claude-Oronce Finé de Brianville (1608-74), conta, por meio de histórias, os reinos sucessivos dos reis da França. "Le Jeu de Cartes" [jogo de cartas], de Desmarets de Saint-Sorlin (1595-1674), é organizado em torno de personagens reais.

    A religião, igualmente, oferece um novo lugar à referência histórica, com o "Catéchisme Historique", por exemplo, publicado em 1683 pelo futuro cardeal de Fleury.

    Todavia, é bom não ter ilusões. A história ainda não é, propriamente falando, matéria de ensino. Ela só virá a sê-lo no final do século 18 e no início do século 19. O caso francês pode ser tomado como exemplar.

    O ensino da história foi favorecido na França pela edição regular de fontes efetuadas por especialistas, ancestrais dos historiadores ou os mais antigos dentre eles. Os primeiros são os bollandistas, do nome de seu fundador, o jesuíta belga Jean Bolland (1596-1665). Eles asseguraram a publicação, a partir de 1643, das "Acta Sanctorum": por meio desses textos dedicados aos santos, eram implementadas e aplicadas as regras da crítica "científica". Essa edição fundamental foi completada por diversas publicações eruditas, entre as quais, a partir de 1882, a revista "Analecta Bollandiana": mesmo nesse meio instruído, a difusão da história foi lenta até o século 19.

    O que é ensinado sob o nome de "história" em alguns centros escolares do último terço do século 18 diz mais respeito ao exemplo moral, por exemplo, nas escolas militares preparatórias criadas em 1776 e na Maison Royale de Saint-Louis, que recebe as filhas de militares da escola de Saint-Cyr. Pode-se resumir o objetivo central desse ensino pela fórmula "Historia magistral vitae" (história professora de vida): próximo da Revolução Francesa, ele parece destinado sobretudo a formar bons cidadãos –desejo que certos historiadores e professores não renegariam em nossos dias.

    Com a criação dos liceus, sob Bonaparte, em 1802, o ensino da história é tornado obrigatório no secundário, mesmo que seu lugar continue a ser limitado. Na França, a Restauração corresponde ao verdadeiro início do ensino de história no secundário: o filósofo e antropólogo Marcel Gauchet mostrou esse fato com maestria. Fundou-se um prêmio de história no concurso geral em 1819. A disciplina integra a prova oral do "baccalauréat"¹, em 1820, e a agregação² de história e de geografia é criada em 1830. Outra data importante marca a fundação, já mencionada, da École Nationale des Chartes em 1821.

    A periodização então adotada nos manuais de ensino em geral retoma aquela que era restrita, antes da Revolução, aos colégios que concediam um lugar à história: história santa e mitologia, história da Antiguidade, história nacional. Ela reflete duas preocupações dos governantes da época: o cuidado em manter a religião, seja sob sua forma cristã, seja sob sua forma pagã, na história; a tomada de consciência, sancionada pela Revolução, da importância dos Estados chamados de nações.

    Notas do tradutor: 1. Também conhecido pela abreviatura "bac", é um exame similar ao nosso vestibular, aplicado ao final do curso secundário. 2. Concurso para a admissão de professores no corpo docente de uma universidade.

    JACQUES LE GOFF (1924-2014), historiador francês especialista em Idade Média, escreveu, entre outros, "História e Memória" (ed. Unicamp) e "Uma Breve História da Europa" (Vozes).

    NÍCIA ADAN BONATTI, 65, é doutora em linguística e professora aposentada da Universidade Mackenzie.

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