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    Irã se volta à cultura pop do Ocidente para reconquistar sua juventude

    NARGES BAJOGHLI
    DO "GUARDIAN"

    27/07/2015 13h00

    O rapper iraniano Amir Tataloo lançou um novo clip no dia anterior à conclusão do acordo nuclear iraniano, em 14 de julho. O título era "Nuclear Energy" (energia nuclear), e o vídeo se tornou sucesso instantâneo na web iraniana. O clip (assista abaixo) mostra membros da marinha da república islâmica, em um navio de guerra, cantando "isso é nosso direito absoluto, termos um Golfo Pérsico armado".

    O vídeo, com claro apoio do regime e de seu aparelho militar, chocou muitos iranianos, já que as autoridades costumavam desdenhar os rappers, definindo-os como bandidos ocidentalizados, na melhor das hipóteses, ou propagadores do mal, na pior. Tataloo, 32, um rapper com um milhão de seguidores nas mídias sociais, tinha de produzir sua música clandestinamente, até um ano atrás. Em dezembro de 2013, ele foi detido por suposta cooperação com estações estrangeiras de TV via satélite. A participação das forças armadas em um vídeo musical de um artista underground que gosta de alardear suas tatuagens, cabelo comprido e piercings parece ser um enigma. Mas não é. Reforça uma estratégia que os produtores culturais do regime vêm promovendo já há dez anos. A elite cultural da república islâmica acredita que seja crucialmente importante conquistar o apoio da população jovem do Irã, um apoio que eles temem ter sido abalado desde os protestos de rua contra o resultado contestado da eleição presidencial de 2009.

    O vídeo de Tataloo é o mais recente exemplo das maneiras pelas quais os centros culturais do regime financiaram, apoiaram e promoveram o nacionalismo, em lugar do islamismo, como forma de atrair os jovens, em muitos casos se apropriando de aspectos proibidos da cultura popular como parte do processo.

    Com as invasões dos Estados Unidos ao Afeganistão, em 2001, e Irã, em 2003, o Irã se viu cercado por forças militares e categorizado pelo presidente George W. Bush como parte do "eixo do mal". Incerta do que o governo Bush poderia fazer depois da queda de Bagdá, e dada a interferência dos serviços de inteligência norte-americanos e israelenses que fomentavam inquietação nas minorias étnicas do país, a elite islâmica sabia que era necessário escorar o apoio público ao regime.

    Alguns observadores nos centros de cultura próximos ao regime iraniano sentiam existir um problema, porém; muito poucos jovens se interessavam pelos veículos de mídia do Estado. Os produtores de mídia haviam dedicado 20 anos a criar filmes, séries de TV e livros sobre a "sagrada defesa", a guerra com o Iraque entre 1980 e 1988. Mas, dos anos 90 em diante, as vendas de ingressos e livros despencaram, de acordo com declarações dessas mesmas fontes.

    Em geral, os jovens iranianos não estavam respondendo em grande número aos livros e filmes sobre a guerra e o passado da república islâmica descritos como "sagrados". Se os Estados Unidos viessem a atacar o Irã, ponderaram alguns cineastas pró-regime, será que os jovens iranianos se levantariam em defesa da nação? Temendo uma resposta negativa, eles assumiram a responsabilidade de modificar sua narrativa histórica, confiando menos na religião e mais no nacionalismo.

    "Francamente, nós estávamos afastando os jovens com a propaganda produzida nos anos 80 e 90", me disse um conhecido produtor de cinema simpático ao regime, que serviu durante os oito anos da guerra contra o Iraque como soldado voluntário na linha de frente, e mais tarde se tornou oficial de alta patente na Guarda Revolucionária. "Temos de aprender a falar a língua dos jovens e usar seus códigos, se desejamos que eles gostem de nosso trabalho. Em resumo, precisamos entretê-los".

    Observando a crescente tendência ao nacionalismo na população mais ampla, os produtores culturais e a elite política do regime perceberam uma oportunidade. Ao notar uma alta na preferência por nomes persas pré-islâmicos para os bebês e a presença cada vez mais frequente do farvahar, o símbolo do zoroastrismo pré-islâmico, eles decidiram recorrer ao nacionalismo para se conectar com as pessoas. À medida que as pressões internacionais contra o país cresciam, e passavam a incluir sufocantes sanções e uma guerra indireta com a Arábia Saudita, o senso de nacionalismo iraniano continuava a ganhar força. Os produtores estatais de mídia começaram a destacar esse sentimento em suas produções culturais, dos museus aos livros e filmes -e agora à música.

    Um exemplo proeminente é o Museu da Sagrada Defesa, um projeto milionário construído no norte de Teerã, inaugurado em 2012 e bancado por verbas municipais por ordem do prefeito Mohammad Bagher Ghalibaf, antigo comandante da Guarda Revolucionária. O museu traça uma narrativa sobre a guerra com o Iraque diferente dos museus de mártires mais antigos e tradicionais encontrados em todas as grandes e pequenas cidades do país. Esses últimos celebram a guerra em termos puramente religiosos, celebrando os mártires que morreram pelo "imã Khomeini e o Islã", enquanto o novo museu de Teerã se esforça muito por enquadrar o conflito em termos nacionais.

    Uma das principais alas do novo museu exibe grandes mapas que mostram a extensão do império persa e das regiões asiáticas que este governava mais de três mil anos atrás. O território é contrastado com a progressiva redução do território iraniano ao longo dos séculos. O Irã atual é minúsculo se comparado ao glorioso império pintado na parede. A mensagem do museu: reinos anteriores cederam territórios, pensando mais em encher os bolsos do que no bem-estar da nação... até que surgiu a república islâmica e defendeu as fronteiras do Irã, e por extensão sua dignidade como civilização antiquíssima.

    O museu, em linha com a nova estratégia dos produtores culturais, abandona a celebração dos mártires e oferece uma narrativa carregada de nacionalismo, dignidade e orgulho. "A geração mais jovem não compreende nossa linguagem religiosa", disse um importante cineasta em uma reunião de produtores culturais pró-regime da qual participei. "Temos de reenquadrar nossos heróis para eles -dar-lhes heróis com os quais possam se relacionar".

    Dessa forma, grandes verbas estatais e da Guarda Revolucionária foram dedicadas a produzir filmes com heróis "acessíveis", que tanto tenham defendido o Irã quanto professado sua adesão à revolução. O mais notável desses filmes foi "Che" (2014), de Ebrahim Hatamikia, um filme sobre Mostafa Chamran, o primeiro ministro da Defesa do Irã pós-revolucionário. O filme retrata Chamran não só como defensor do islamismo mas como homem que lutou para defender os oprimidos, em suma um Che Guevara iraniano ao qual os jovens poderiam admirar.

    Em busca de maiores audiências, cineastas como Masoud Dehnamaki, ex-líder do grupo conservador militante Ansar-e-Hezbollah, se aproveita da cultura pop da juventude. Na trilogia "Os Excluídos", Dehnamaki toma liberalmente de empréstimo canções pop iranianas para retratar um grupo de excluídos sociais -viciados em drogas, ladrões e bandidos em geral- que terminam "redimidos" e tornados cidadãos ideais com a ajuda de generosos simpatizantes do regime.

    Depois do sucesso dos filmes de Dehnamaki na bilheteria, outro proeminente produtor de cinema associado ao regime começou a procurar roqueiros alternativos para criar trilhas sonoras para novos filmes de guerra. "Não me importa que sejam censurados e que alguns de nossos políticos os vejam como más pessoas", ele me disse. "É essa a música que os jovens ouvem, e temos de fazer com que isso trabalhe em nosso favor".

    Determinar se esses esforços funcionam ou não é difícil. Mas vale reparar que um funeral público realizado no mês passado para 175 mergulhadores militares da guerra contra o Iraque cujos corpos foram encontrados recentemente atraiu multidões sem precedentes, de todas as orientações políticas e sociais, e incluía pessoas que normalmente não participam de eventos patrocinados pelo Estado. Os mergulhadores foram celebrados como heróis nacionais por defenderem a soberania do Irã.

    "Os mergulhadores eram os mais corajosos de nós. Deram as vidas pela independência de nosso país e o sucesso da revolução", disse Mohsen Rezaei, que comandou a Guarda Revolucionária durante a guerra, em discurso na cerimônia. O vídeo musical de Tataloo surgiu nesse contexto e utiliza imagens conhecidas que era comum ver na década passada. O objetivo último de todo trabalho cultural patrocinado pelo Estado, e pelas vastas verbas a isso dedicadas, é manter viva a revolução.

    Vídeo

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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