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    O legado de Frei Otto, o alemão que nunca recebeu seu Pritzker

    GABRIEL KOGAN

    26/07/2015 02h03

    RESUMO Vencedor do Prêmio Pritzker deste ano, anunciado um dia após sua morte, o arquiteto alemão Frei Otto (1925-2015) se dedicou a construir estruturas de aparente leveza usando o mínimo de material. Longe dos holofotes, seu processo de projetar incorporava tentativas experimentais com margem para erros e acertos.

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    Quando começou a correr a notícia do Pritzker de 2015 para Frei Otto, pouca gente sabia que o ganhador do prêmio considerado o Nobel da arquitetura havia morrido algumas horas antes. Pela primeira vez em 36 anos de existência, a medalha –já conferida a mestres como Oscar Niemeyer (1988), Renzo Piano (1998) e Paulo Mendes da Rocha (2006)– foi dedicada a um arquiteto morto.

    Frei Otto viveu seus 89 anos como morreu: um anti-herói discreto e racional em um meio de ideias espalhafatosas. Admirado por arquitetos e engenheiros, sobretudo nos anos 60 e 70, ele se manteve distante dos holofotes voltados aos arquitetos-celebridades e à margem dos grandes projetos contemporâneos. O alemão não teve tempo de usufruir da fama do Pritzker, mas soube da láurea em vida e gravou um depoimento exibido na entrega do prêmio em Miami em 15 de maio: "Eu nunca fiz nada para ganhar isso", disse, arrancando risos da plateia.

    Lembrado por amigos como um humanista, Otto deixa um legado multidisciplinar e plural; unia, como poucos, as ciências humanas à técnica das exatas. Projetou de zepelins a estádios olímpicos, passando por pequenos conjuntos habitacionais populares. Sua obra se junta à de grandes pensadores do século 20 –como Pier Luigi Nervi e suas cascas esculturais de concreto ou Buckminster Fuller e as incríveis geodésicas– que trabalhavam no limiar entre a arquitetura e a engenharia na busca racional por formas. "Construir significa fazer a arquitetura se tornar real nas bordas do conhecimento", dizia Otto, sempre em busca de novos modelos para realizar suas ideias.

    Em tempos de desenhos paramétricos feitos por computadores a partir de equações matemáticas arbitrárias, de irracionalidades construtivas travestidas de sofisticações estéticas, de ideias mirabolantes sem raciocínio espacial e estrutural, o professor e cientista Frei Otto deixa como legado –agora iluminado pelo Prêmio Pritzker– lições mais do que urgentes para um mundo em crise.

    "O maior ensinamento deixado por Frei Otto foi o uso mínimo de matéria para uma estrutura", opina um de seus principais discípulos, o arquiteto japonês Shigeru Ban –ganhador do Pritzker em 2014. Os projetos do alemão emergiam da compreensão de leis das ciências naturais, sobretudo da física e da biologia. A pergunta básica era: como vencer o maior vão com a menor quantidade de material?

    Em 1964, Otto fundou o Laboratório de Estruturas Leves na Universidade de Stuttgart, onde formas curvas ultrarracionais –catenárias e paraboloides hiperbólicos– nasciam de materiais frágeis e disformes como tecidos e cabos tensionados. Assim, geometrias derivadas de leis básicas da física resultavam em economia extrema de materiais construtivos. Nessa pesquisa, concebeu o pavilhão alemão em Montreal em 1967, parecido com uma grande cabana com oito esbeltos mastros de até 13 andares de altura.

    Para chegar a respostas complexas ainda em tempos pré-digitais, Otto construía centenas de experimentos, feitos e desfeitos. "Ele projetava fazendo maquetes, muitas maquetes", lembra Shigeru Ban, parceiro de Otto no pavilhão do Japão na Feira de Hannover de 2000.

    Os materiais usados nesses modelos? Roupas impregnadas de gesso (e penduradas cientificamente em varais de casa), correntes metálicas com pesos e, principalmente, bolinhas de sabão que, pela reduzida espessura, criam, naturalmente, a mais eficiente distribuição de cargas em uma superfície.

    O alemão mergulhava em água com sabão arames de diferentes formas, fotografava e estudava as imagens. O processo de projetar tinha uma grande dose experimental de erro e acerto antes de se tornar um desenho técnico. Foi assim para o Estádio Olímpico de Munique em 1972, em que esses experimentos foram levados para o computador, no primeiro projeto usando os hoje comuns softwares CAD. A gigantesca cobertura do estádio, com formas orgânicas, feita em aço, acrílico e membrana, se tornou sua obra-prima.

    A metodologia de Otto lembrava a usada por Antoni Gaudí, já no final do século 19. O autor da Sagrada Família criava suas formas a partir de experimentos com cabos e correntes penduradas. O princípio era simples: o cabo pendurado fazia uma distribuição ótima do peso e, assim, essa mesma curva poderia ser usada de cabeça para baixo como um arco. "A maioria dos arquitetos pensava com desenhos. Agora pensam com computadores. Eu sempre tentei pensar tridimensionalmente. O interior do olho não deve ser plano, mas tridimensional, assim tudo é um objeto no espaço", declarou Otto em 2005.

    O alemão nunca foi avesso à era digital e se orgulhava de ter tido todos seus projetos calculados por computadores desde os anos 60. No entanto, era crítico ao uso indiscriminado dessas ferramentas: "O computador pode apenas calcular o que já está conceitualmente dentro dele; você só pode achar o que procura nos computadores. Eu não acho formas, mas crio formas", disse em entrevista em 2004 para Juan Maria Songel ("A Conversation with Frei Otto", Princeton Architectural Press).

    A concepção da arquitetura derivada da estrutura, e a estrutura, por sua vez, derivada de formas racionais vindas de leis da física é a antítese de uma vertente dominante da arquitetura contemporânea representada por Zaha Hadid e Frank Gehry. Para eles, uma suposta beleza do edifício se impõe à precisão estrutural e à economia. Os pilares e vigas ganham então grandes dimensões e usam muito material para sustentar formas arbitrárias e irracionais, na qual a observação da natureza assume aspecto formal e não construtivo.

    HOMEM-NATUREZA

    A "estrutura como arquitetura" de Otto tinha uma dimensão ecológica: "Usar o ar como material de construção significa que a quantidade de material necessária é mínima, então você pode dedicar suas forças na relação entre os animais e o homem, entre o homem e as plantas, e fazer um ambiente em equilíbrio", dizia em referência às leves estruturas tensionadas.

    David Adjaye, um dos expoentes da arquitetura britânica contemporânea, ao ser questionado se a palavra sustentabilidade poderia ser usada para descrever a obra de Otto, no entanto, vacila: "Não exatamente; talvez apenas em termos filosóficos, se pesarmos na economia de material e energia".

    Frei Otto de fato trabalhava com uma visão mais complexa e sofisticada da relação homem-natureza do que a conotação propagandística assumida pela palavra sustentabilidade nas últimas duas décadas.

    Para Alejandro Aravena –arquiteto chileno anunciado este mês como novo curador da Bienal de Arquitetura de Veneza– a obra de Otto "é sustentável se considerarmos o senso comum, a impressão das pessoas". "Uma tenda de Otto tem um conforto ambiental esperado para um espaço", afirma ele à Folha. Portanto, não se trataria de uma visão imposta de um conceito de sustentabilidade, mas da sensação dos seres humanos em relação a seu ambiente e à necessidade de criar abrigos.

    Nos anos 60 e 70, Otto já era pioneiro na questão ecológica da arquitetura, sempre com a racionalização dos recursos. Sua obra, enraizada em valores primitivos e essenciais, pode ser lida como um questionamento sobre modos de vida mínimos, sobre o quanto precisamos modificar o ambiente para construirmos uma vida urbana. "O segredo do futuro", dizia, "é não fazer muito; todos os arquitetos tem a tendência de fazer demais". Essa visão não se alinha aos preceitos dominantes da sustentabilidade nos dias atuais, muito relacionada a gadgets tecnológicos, certificados e à construção da imagem de empresas por meio de edifícios grandes e monumentais.

    A arquitetura de Otto tinha um domínio da temporalidade: não como uma busca pela eternidade, como faz a maioria das arquiteturas, mas como fato transitório. Os seus edifícios estão repousando no planeta, não necessariamente por aqui ficarão. Assim, se especializou em pavilhões, facilmente montáveis e desmontáveis. Nada dura para sempre e talvez fosse mais fácil projetar já considerando esse fato.

    A graduação de Otto nos anos 1940 foi interrompida pelo acirramento da Segunda Guerra Mundial e o futuro arquiteto se viu, da noite para o dia, em combate pela Alemanha. Acabou capturado, em 1945, e em um campo de prisioneiros passou a fazer aquilo que melhor sabia: estruturas, construção. Ele se tornou por lá um arquiteto informal, construindo cabanas. As construções leves em tecidos –que seriam a marca de todo seu trabalho no futuro– se contrapunham à monumentalidade sólida e, em tese, permanente dos edifícios feitos para o Terceiro Reich.

    Chocado com os horrores da guerra e da destruição das cidades, Otto construiu as bases de sua arquitetura na leveza e na relação humana. Para um pequeno conjunto habitacional em Berlim, o Ökohaus (1976-1987), criou uma arquitetura aberta e flexível: os moradores recebiam apenas lajes de concreto e podiam projetar suas casas com a ajuda do arquiteto. Os envolvidos levaram ao extremo a participação e o longo processo de uma década se deu em discussões com os moradores sobre as soluções para cada uma das casas.

    De todas as lições deixadas pelo arquiteto, a maior foi ter feito jus ao seu nome: Frei, em alemão, livre. Sua arquitetura era livre. Ele repetia que não se podia impor regras aos estudantes de arquitetura, que não se podia cortar a possibilidade de investigação deles. Era necessário oferecer liberdade. Como ele diz no filme produzido pelo Pritzker: "Eu sou Frei, eu sou livre, eu sou Frei Otto; é tudo a mesma coisa."

    GABRIEL KOGAN, 29, é arquiteto e jornalista.

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