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    Mostra de arte em Londres trata de mundo obcecado por selfies

    JONATHAN JONES
    DO "GUARDIAN"*

    29/07/2015 16h00

    A arte do retrato ficou no passado? Certamente não. Continuamos a gostar tanto quanto antes de olhar para rostos humanos. Todos nos consideramos exímios produtores de autorretratos, fazendo caretas para as câmeras de nossos celulares exatamente como Rembrandt um dia fez para suas gravuras em modo selfie. A imagem humana está em toda parte -na publicidade, programas de TV, política. Será que a barba (do parlamentar trabalhista) Jeremy Corbin é a fonte de seu poder? Será que as coisas começaram a dar certo para (o ministro das Finanças) George Osborne quando ele cortou o cabelo de um jeito menos careta?

    O mundo continua tão obcecado com aparências quanto era no momento em que Nefertiti ordenou que seu busto fosse esculpido, mais de três mil anos atrás, e os artistas sem dúvida continuam fascinados pelos retratos. E eles ainda assim representam inegavelmente uma forma antiga e respeitada que até mesmo em nossas fotos de férias tem algo de reconfortante -ou assustadoramente- ancestral. É por isso que, mesmo em uma era de grandes retratistas como Alex Katz e Chuck Close, e com Lucian Freud morto há tão pouco tempo, a sobrevivência do retrato sempre parece estar em dúvida. Ele pertence tanto ao agora quanto a um tempo perdido no passado. Às vezes, essa tensão é criativa; às vezes, ela faz com que o gênero todo pareça parado, morto.

    Os argumentos em favor da afirmação de que o retrato morreu parecem ter sido defendidos, involuntariamente, pelo prêmio BP Portrait, na Galeria Nacional de Retratos britânica. Já argumentos propondo que ele continua perversamente vivo podem ser encontrados na mostra "Facing History" (enfrentando a história), no museu Victoria & Albert, em Londres, exame muito menor, mas muito mais interessante, da arte do retrato contemporânea.

    Os artistas participantes não se deixam nem esmagar e nem distrair pelos aspectos antiquados da arte do retrato, sua arcaica formalidade e sua conexão com salas de desenho antiquadas de cujas paredes revestidas em veludo ancestrais vitorianos nos contemplam. Preferem brincar com esse lado cafona. Julian Opie toma o retrato tradicional de casamento e o torna um par de rostos de cartum emoldurados em ébano, explorando sua capacidade notável de simplificar o rosto humano mas ainda assim revelar sua individualidade. Grayson Perry faz uma jogada parecida com seus retratos em linocut, "Mr and Ms Perry". "Woman Reading Possession Order" (mulher lendo ordem de despejo), uma famosa foto de Tom Hunter que serve como uma espécie de documentário social ao modo de Vermeer, tem nova ressonância agora que os imóveis em Londres (como aquele do qual a mulher retratada e seu filho estão sendo despejados) se tornaram excessivamente caros.

    Todos esses artistas se inspiraram no passado para reinventar o retrato. Mas não em qualquer passado. Existe uma curiosa compatibilidade entre a sensibilidade atual e a formalidade dos retratos holandeses do século 17, as miniaturas da era elisabetana ou as medalhas da renascença -gêneros que podem ser vistos na mostra do Museu V&A. Essas formas tradicionais compartilhavam todas de uma certa frieza e reticência. Buscavam registrar honestamente a imagem humana, sem abusar da expressividade e do romantismo quanto a ela. Eram gêneros de pintura que preferiam rostos em repouso, quase inexpressivos. Em seu quadro "Portrait of Something that I'll Never Really See" (retrato de algo que eu nunca verei realmente) (fotografado por Anthony Oliver), Gavin Turk imagina posar para sua máscara mortuária -ele permite que a câmera o capture com frieza, de olhos fechados, um rosto liberto da paixão e da vida.

    A conexão entre a arte de hoje e os retratos tradicionais mais sombrios está em que tendemos a nos ver, e a ver os outros, de maneira seca, até brutal, da mesma forma que a pessoa que registrou o rosto de Oliver Cromwell na morte capturou cada verruga. As pessoas nos retratos dessa mostra não gritam ou se esforçam demais para atrair atenção. Elas simplesmente são. Bettina von Zwehl, que estudou a comovente coleção de miniaturas do V&A em seu período como artista residente do museu, foi inspirada por essas imagens minúsculas de pessoas que parecem quase que magicamente encolhidas e aprisionadas a fim de criar 34 miniaturas fotográficas de Sophia Birikorang, uma funcionária do museu, ao longo de um período de meses. As imagens atestam a durabilidade e a transformação do eu, de um dia para o seguinte. Os retratos não requerem ostentação para serem poderosos -precisam só ser verdadeiros.

    Mas retratos também são máscaras, um jogo. Os artistas brincam com poses desde a renascença. Hoje é Cindy Sherman que o faz, assim como Ellen Heck, que em suas xilogravuras coloridas faz com que suas amigas posem como Frida Kahlo. Todas se tornam Frida por um dia. Mas quem é Frida? Ela mesma entra na brincadeira, posando como a "Dama com Arminho", de Leonardo da Vinci, agora possuidora da inconfundível e espessa monocelha da artista.

    A arte do retrato, quando você começa a apreciar tanto sua formalidade quanto seu desajeito, prova ser uma arte de infinitas possibilidades. O que temos nessa mostra é um agradável vislumbre do futuro do passado.

    "Facing History" está em cartaz no Museu V&A, de Londres, de 27 de julho a 24 de abril de 2016

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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