• Ilustríssima

    Thursday, 02-May-2024 15:39:15 -03

    Drones têm falha ética e tecnológica

    RONALDO LEMOS

    02/08/2015 02h07

    RESUMO Livro de pensador francês discute a questão contemporânea do uso de drones como ferramenta de guerra. Esses dispositivos são vistos pelo autor como inaceitáveis. A existência do drone letal seria por si só um atentado moral, sendo irrelevante se as finalidades para as quais é utilizado justifiquem-se ou não.

    *

    "A filosofia é coisa sem a qual ou com a qual tudo permanece igual." O provocador ditado italiano é subvertido pelo livro "Teoria do Drone", de Grégoire Chamayou [Cosac Naify, 320 págs., R$ 39,90]. Nele, o autor instrumentaliza o arsenal teórico-filosófico para atacar uma questão central da geopolítica do presente: o uso de drones como ferramenta de guerra.

    De acordo com dados da ONG britânica Bureau of Investigative Journalism (agência de jornalismo investigativo), que pesquisa o assunto, só em 2015 ao menos 51 pessoas foram mortas no Paquistão em 11 ataques americanos com esse tipo de aeronave, sendo duas civis. Houve mais 46 mortes no Iêmen e sete na Somália, segundo o instituto.

    A definição de drone aparece logo no início do livro: "Veículo terrestre, naval ou aeronáutico, controlado à distância ou de modo automático". E vem daí também uma lacuna. Seu foco são apenas os drones voadores armados de uso militar, com controle nas mãos do Estado –designados pelo autor como "olho convertido em arma".

    Massoud Hossaini/AFP
    Drone do exército americano armado com míssil, na pista de aeroporto militar de Kandahar, no Afeganistão
    Drone do exército americano armado com míssil, na pista de aeroporto militar de Kandahar, no Afeganistão

    Apenas superficialmente o texto trata da iminente evolução desses equipamentos como artefatos acessíveis também a civis, inclusive para fins letais. Por exemplo, máquinas assassinas na forma de pequenos insetos, controladas a distância por um simples smartphone e usadas para inocular veneno no inimigo –a imagem é da professora Gabriella Blum, da Universidade Harvard–, têm referência passageira no livro.

    ÉTICA

    Apesar de não dar muita atenção a esse futuro ainda mais complexo, Chamayou debruça-se sobre um campo que já é suficientemente vasto para um questionamento filosófico. Seu texto diferencia-se das análises mais corriqueiras justamente por invocar categorias com pretensões universais, como ética, poder, território e justiça, para refletir sobre a relação do homem com a tecnologia.

    Chamayou não é observador imparcial. Ele é um obstinado estudioso da prática das caçadas humanas. Em seu livro anterior, "Les Chasses à l'Homme" (as caças ao homem, La Fabrique, 2010), ele fez um abrangente levantamento desses métodos, que incluem caças a escravos fugitivos –que remontam à Grécia antiga–, passando pelo extermínio de judeus e chegando à questão contemporânea da imigração ilegal.

    Em "Teoria do Drone", Chamayou parece ter encontrado o ápice da evolução da caça humana. Não por acaso, ele se coloca desde o início contra esse tipo de tecnologia. Alega que "o objetivo do livro é fornecer ferramentas discursivas a quem quiser se opor à política que usa o drone como instrumento".

    Ao fazer isso, incentiva o leitor a romper com uma ideia hegemônica: a de que a tecnologia é em si neutra e somente seus usos podem ser considerados bons ou maus. Essa visão da tecnologia "neutra" permite, por exemplo, a ampla disseminação da vigilância de massa, inclusive embarcada em produtos de consumo ou na gestão das cidades, sem qualquer questionamento mais contundente.

    Essa é uma das pedras de toque da obra de Chamayou: lembrar que certas tecnologias podem ser um mal em si. A existência do drone letal seria ela mesma um atentado moral, sendo irrelevante se as finalidades para as quais ele é utilizado justifiquem-se ou não. Os passos do autor abrem a possibilidade de questionamento filosófico sobre vastos campos do desenvolvimento tecnológico: inteligência artificial, nanotecnologia, computação quântica e biotecnologia. Todos capazes de produzir abalos nos modos de vida humanos.

    A obra revela-se, assim, humanista. Ela nos convoca, como seres humanos e, por que não dizer, animais políticos e morais, a questionar nossa relação com a técnica e a abandonarmos a noção de determinismo ao fazermos essa reflexão.

    O livro é de leitura acessível, costurado por exemplos concretos, citações históricas e imagens (estilo que anda em voga em obras filosóficas recentes).

    MITOS

    Um ponto alto é a discussão sobre a separação, promovida pelos drones, entre o uso da força letal e o risco de morte (os drones "projetam poder, sem projetar vulnerabilidades"). O autor recorre aos mitos históricos de invulnerabilidade para investigar essa questão.

    Lembra Aquiles ("impenetrável ao ferro, exceto no calcanhar"). Ou Zoroastro, que na mitologia persa "verte água encantada na cabeça de Isfendiar, mas como este fechou os olhos, pôde ser abatido por uma flecha na órbita direita". Ou Frigga que, nas fábulas nórdicas, "fez todos os seres inanimados e animados jurarem poupar seu filho Balder. Todos prestaram juramento, exceto uma planta frágil, o azevinho, omitida na consulta".

    Argumenta, assim, que a invulnerabilidade do drone também é mito. Falhas como a latência do sinal, que gera uma defasagem entre o que se vê na tela do operador e o que se passa de fato no chão, já são exploradas. Alvos de drones jogam com essa assincronia, movendo-se em zigue-zage para escapar do ataque.

    Além disso há casos de pirataria e bloqueio do sinal de rádio que controla os drones. Para isso basta ser usado um software que se baixa de graça pela internet e uma antena de transmissão de menos de 30 dólares. É o calcanhar de Aquiles dessas máquinas.

    Por fim, o livro faz parte da coleção "Exit" da editora Cosac Naify, que "busca analisar criticamente temas do mundo contemporâneo, para pensar saídas para a complexidade da vida de hoje". O esforço é bem-vindo, em especial porque são poucas as referências na área em português disponíveis para nós brasileiros, exímios consumidores de tecnologia, mas ainda pouco afeitos a um pensamento de longo prazo sobre suas consequências.

    RONALDO LEMOS, 39, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e do Creative Commons no Brasil, é colunista da Folha.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024