• Ilustríssima

    Monday, 29-Apr-2024 10:14:22 -03

    Experiência histórica e imaginação

    FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

    09/08/2015 02h04

    O caráter narrativo da utopia pode nos levar a pensá-la como uma obra de ficção completa em si mesma, isto é, como uma história estabelecida na totalidade dos elementos que a integram. Esta história nos indica um outro lugar, cuja indefinição o torna um não-lugar, ou um lugar da imaginação.

    Assim, deixamos de entender que este outro lugar ou esta outra história pode ser o resultado de uma transformação, um processo que nos conduziria de onde estamos para onde poderíamos estar, daquilo que somos para aquilo que poderíamos ser. Como não percebemos o movimento que assim nos desloca, julgamos constatar uma ruptura entre o topos que habitamos e o utópico que imaginamos. Como se passássemos de um a outro sem transição.

    E poderíamos ainda conjecturar que esta visão de ruptura, que seria como uma ausência de relação, indicaria a impossibilidade de um percurso histórico do tópico ao utópico. A visão de uma terra feliz ou de uma sociedade perfeita envolveria, talvez paradoxalmente, certo pessimismo a respeito da história e do progresso. É por isso que não podemos explicar como se chega à utopia; só podemos imaginar.

    Neste sentido haveria tal grau de diferença entre o espírito objetivo e o espírito utópico que um não poderia conduzir ao outro. Esta situação pode provocar ao menos duas atitudes. Para o historicista, a utopia nada mais é do que um exercício gratuito da imaginação, porque nos mostra um lugar para onde a história não nos conduz. A lógica da história não comporta expectativas utópicas. Para o anti-historicista, aquele que não deposita qualquer esperança na história, a utopia será aquilo que nos resta quando nos falta a confiança na história, mas um jogo entre razão e emoção ainda insiste em nos fazer pensar na libertação da armadura weberiana na qual estamos aprisionados –o inflexível sistema do mundo desencantado.

    A pergunta a ser feita quando nos colocamos a questão da relação entre história e utopia é pelas possibilidades e pelos limites do pensamento, sobretudo se não o entendemos como exercício especulativo, mas sim como intrinsecamente vinculado à ação - uma continuidade que, se não designa a liberdade, pelo menos possibilita o esforço de libertação. O que muitas vezes ouvimos da parte daqueles que não veem na utopia senão um modo vago e inócuo de pensar é que ela estaria além de toda transformação racionalmente concebível e, assim, não poderia desempenhar qualquer papel nos movimentos de mudança histórica. Argumento que implica assumir que os limites da realidade estão dados implicitamente no presente, do qual o futuro só poderia ser o desdobramento, já que o processo produtor de diferenças estaria comprometido com a estrutura da relação causa/efeito. Um outro
    mundo só poderia ser pensado como algo produzido (historicamente) a partir deste mesmo mundo. Caso contrário, teríamos de conceber a transformação como ação criadora, algo que estaria além dos limites da racionalidade histórica. Em outras palavras, toda transição, para ser explicada, deve supor causalidade histórica. Do topos ao topos; nunca do topos à utopia. Somente assim, poderíamos, de modo razoável, compatibilizar esperança e história, cultivando expectativas que não se tornem desejos frustrados.

    Entretanto, Bergson chamou nossa atenção para um significado mais radical de transformação. Ordinariamente atentamos para a mudança de forma como se esta fosse a única possibilidade semântica. Mas, além da relação entre duas formas consecutivas, deveríamos considerar também o movimento de passagem de uma forma a outra: não apenas os pontos inicial e final, mas o processo que consiste no movimento pelo qual uma forma torna-se outra. Para Bergson, a sensibilidade a este processo nos forneceria algo mais relevante do que a simples localização de duas posições em sequência, ainda mais se levarmos em conta que neste caso a sucessão é ordinariamente percebida como simultaneidade, já que habitualmente abstraímos justamente o movimento de mudança.

    Isto significa que a essência da transformação é o movimento temporal que engendra, por formação, a forma, que seria muito mais uma interrupção do processo do que a sua revelação. Ora, se este movimento se define por si e não pela conjugação de uma causa inicial e de uma causa final, então as categorias determinantes com que opera o entendimento
    já não se aplicam, uma vez que delas escaparia o processo, um percurso em vias de se fazer e não uma totalidade determinada. Assim, a questão colocada por Bergson é: se o movimento foge dos parâmetros intelectuais da determinação causal, não poderia ele ser considerado nos termos de criação e imprevisibilidade? A novidade radical escaparia assim da análise do entendimento e seria constatada no âmbito da imaginação e da emoção, que não são formas de representação cognitiva, mas que revelariam algo como a potência da realidade.

    Neste caso podemos, talvez, entender o modo de visar a realidade utópica: seria, em linguagem fenomenológica, uma modalidade imaginante da intencionalidade da consciência. Não obteríamos, através dela, conhecimento em sentido objetivo, mas entraríamos em contato com uma representação ética e política das possibilidades de existir. Tal modalidade de consciência não pode ser definida como mera expectativa, mas como uma esperança afirmativa, que produz um deslocamento existencial pleno de significado ético-político, ou, para dizer de outro modo, uma relação altamente complexa entre experiência histórica e imaginação, no âmbito da qual talvez se possa pensar em criação. O que seria visado neste caso não seria algum objeto ou situação objetiva, mas o próprio movimento que engendra, imaginativamente, outro lugar, outra história, outros sujeitos.

    Isto também significa que muitas vezes o espírito utópico se reveste de urgência: como disse Camus, por vezes temos de escolher entre "o pensamento político anacrônico e o pensamento utópico" e tal escolha se faz necessária porque "o pensamento anacrônico está em vias de nos matar", tal é o grau a que pode chegar a opressão do existente ou a
    "ditadura dos fatos", que a necessidade histórica não pode superar por si mesma. Mas a passagem da anacronia à utopia pode permitir "dar forma aos sonhos mais clarividentes" (Camus).

    Bibliografia:
    BERGSON, H. Ensaio sobre os dados Imediatos da Consciência. Edições 70
    SARTRE, J-P. O imaginário. Editora Ática.
    CAMUS, A. Atuais - Crônicas. Editora Hedra.

    FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA apresenta a conferência "A Experiência Histórica e Imaginação" dia 17/8 no Rio, 19/8 em São Paulo, 25/8 em Brasília e 9/9 em Belo Horizonte dentro da programação do ciclo Mutações deste ano. Para mais informações: www.mutacoes.com.br

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024