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    Thursday, 16-May-2024 00:56:43 -03

    Leia trecho de "O Livro dos Divãs", de Tamara Kamenszain

    TAMARA KAMENSZAIN
    tradução CARLITO AZEVEDO e PALOMA VIDAL
    ilustração PATRICIA BRANDSTATTER

    16/08/2015 02h01

    SOBRE O TEXTO "O Livro dos Divãs" (64 págs., R$ 28), do qual aqui apresentamos o início, será lançado pela 7Letras, com a presença da autora e dos tradutores no dia 9/9, às 21h, na Escola Letra Freudiana, no Rio. A poeta também participará da Bienal do Livro do Rio, que neste ano, de 3 a 13/9, homenageia a Argentina.

    Patricia Brandstatter

    Quando lhe digo que meu primeiro livro,

    Deste Lado do Mediterrâneo,

    vai aparecer na obra reunida

    e que isso me dá vergonha,

    ela como se tivesse ouvido mal me responde

    que um mar separa o quarto da filha

    do quarto da mãe.

    É um livro naïf, selvagem

    tenho medo que me delate,

    insisto bancando a que também ouviu mal

    embora tenha ficado claro que como num passe de mágica

    já tínhamos mudado de assunto.

    Ela, seu suposto saber, acha graça.

    Diz: o sintoma é naïf, selvagem, o sintoma delata.

    Será então que quando escrevo libero

    as queixas, as falências, as taras

    que aparecem e desaparecem no ritmo

    de minhas sucessivas análises?

    Ela não responde e isso deve querer dizer

    que sempre existe outra linha de leitura, sempre existe outra.

    .

    Não se nomeavam os sintomas na minha família

    diagnosticava-se com metáforas e é preciso reconhecer

    que embora um discurso datado envelheça hoje a psicanálise

    me obstino continuo procurando

    por fadiga no divã associo livremente

    outro nome para a asma.

    Com seu pudor burguês meus pais haviam traduzido

    doença por cansaço asma por fadiga

    para que eu não me envergonhasse mas foi inútil

    tive que retroceder até a intimidade daquele chiado

    para encontrar aí meu próprio trabalho mensurável

    no fundo da espirometria bem onde inspirar a gente inspira

    mas onde para se inspirar

    busca uma analista que certamente lhe dirá:

    o mar é para ser nadado os asmáticos

    se afogam num copo d'água

    não chegam jamais ao quarto da mãe

    dão braçadas inúteis enquanto o verdadeiro doente

    é outro.

    .

    Eu tinha sonhado com meu primeiro analista

    sentado a noite toda na sala da casa dos meus pais

    será que eu tomo conta de vocês interpretara ele

    e foi aí que o adotei

    porque se de fato queria tomar conta de mim se escolhia ser

    um vigia noturno para apaziguar a respiração da família

    eu ia deixar rolar não me importava

    trocar a mãe por um homem maternal.

    Essa magia me curou da asma por uns anos

    mas não me curou para sempre.

    Meu segundo analista me assinalou o medo de viajar

    decolar do círculo familiar ele disse

    como se um oceano tivesse que por fim separar

    o que continuava fixo no quarto ao lado.

    Um círculo ou um gueto: no divã de hoje não me ocorre

    uma associação menos óbvia do que essa

    para dar mais uma volta

    ao que não tem mais volta

    Faço análise sem remédio para me sentir jovem

    ou escrevo para remediar meus livros antigos?

    Nem a mim interessa a resposta

    se o inconsciente sobe na bicicleta do tempo

    é porque sua data de validade deixa a repetição

    de cabelos brancos. E o amor? E o amor?

    Ela não abre a boca.

    Seu suposto saber se afoga também

    no copo d'água da minha solidão.

    Não há asma mas nadar sozinha

    é uma fadiga que se paga caro

    eu já tinha nascido separada

    no quarto ao lado da minha mãe

    que trancou contra o meu o seu amor

    esperando a cura de um bebê terminal

    que não era eu.

    .

    Mas por sorte existe outra linha de leitura, sempre existe outra.

    Quando saio satisfeita de uma sessão sento no bar em frente

    e aí, sim, aí, sim, associo livremente

    porque nem bem as pessoas sobem os decibéis das conversas

    já sei que os guardanapos vão me servir

    para ajustar umas palavras desbotadas

    aos rigores da minha impressora quando eu voltar para casa.

    Isso é legal

    porque escrever se escreve para constatar

    que não há inconsciente que aguente

    o anseio de futuro a alegria de saber que embora tudo se repita

    algo sempre vai mudar da casa ao bar e do bar

    até a casa alguma novidade alguma letra miúda

    que arraste outra vez os termos do contrato:

    o divã proíbe à boca

    o que não vale a pena dizer

    enquanto libera para este livro novo

    as expectativas do que-dirão.

    .

    Mas existe outra linha mais antiga de leitura, mais sábia.

    Por exemplo, o poeta cubano José María Heredia

    se perguntava em 1824

    "Quando acabará o romance da minha vida

    para que comece sua realidade.

    Por que não acabo de despertar do meu sonho?"

    Nessa época um pouco selvagem um pouco naïf

    quando era preciso se virar sozinho

    com as dores do resto diurno

    o poeta pré-romântico passa a ser um pós

    quando questiona os alcances do sonho

    o romance da vida não o convence quer uma realidade

    mas como fazer como fazer dois séculos depois

    para não deixar que as asas do sonho

    suspendam as pretensões da poesia?

    TAMARA KAMENSZAIN, 68, poeta argentina, é autora de "O Gueto/O Eco da Minha Mãe" (7Letras).

    CARLITO AZEVEDO, 54, é poeta e tradutor, autor de "Monodrama" (7Letras).

    PALOMA VIDAL, 40, é escritora, tradutora e professora de teoria literária na Universidade Federal de São Paulo.

    PATRÍCIA BRANDSTATTER, 32, é artista plástica.

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