Em 1997, Décio de Almeida Prado (1917-2000) pretendia receber pessoalmente o Prêmio Mário de Andrade, a ele atribuído pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Acabou desistindo por motivos de saúde. Sabendo que eu iria ao Rio, pediu-me que o representasse e que transmitisse algumas palavras aos organizadores do prêmio.
Anotei seu recado. Disse que lastimava a própria ausência, mas agradecia tal honra por duas razões: por ser Mário de Andrade um dos autores de sua predileção e porque desde a infância estava ligado ao Rio. Naquela mesma biblioteca havia feito pesquisas para seu ensaio sobre João Caetano.
No dia aprazado, 22 de dezembro, me dirigi à Biblioteca Nacional um pouco tensa. Mas toda apreensão desapareceu ao me ver rodeada por amigos muito queridos que não imaginara encontrar ali: Paulo Henriques Britto –também premiado–, Luiz Eduardo Soares, além de Santuza Cambraia Naves, Bárbara e Leonarda Musumeci. Talvez Dulcinha (Dulce Pandolfi) também estivesse presente, mas eu sempre acho que ela está presente, o que combina com as saudades de costume.
Arquivo Pessoal | ||
Agenda de 1997 de Vilma Arêas indicando compromisso na Biblioteca Nacional em 22 de dezembro |
Fiz a minha fala, recebi um documento e um ramo de rosas vermelhas para serem entregues ao Décio. E saímos todos correndo em busca de um restaurante refrigerado, pois o calor era intenso no verão carioca.
Eu segurava as rosas mortificada, sentindo que elas iam se desmanchando. Que fazer? Finalmente encontramos na rua México o restaurante buscado. Ocupamos animadamente uma grande mesa ao fundo e pedimos cervejas "estupidamente geladas". Um casal discutia junto à entrada –uma moça loura e um rapaz de camisa azul, visivelmente constrangido.
Meus amigos fizeram alguns comentários, mas eu só pensava nas rosas. De repente tive uma ideia que me pareceu salvadora: "O que acham se eu der estas flores a alguém aqui do restaurante?". "Mas a quem?", perguntaram. "Ora, ao homem mais bonito. Acho que assinalar a exceção não deixa de ser uma outra maneira de homenagear o Décio", disse.
Todos riram, e as mulheres, após uma rápida olhada pelo salão, decidiram por unanimidade: "Aquele de camisa azul".
Fui até lá. Com minha presença, os dois se calaram. "Desculpe a intromissão", eu disse ao rapaz, "estas flores são para uma pessoa ausente, porém muito especial. Então decidimos homenagear com elas o homem mais bonito do restaurante" –fiz uma pausa estratégica. "Você ganhou por unanimidade. Aqui está seu prêmio." Estendi-lhe as rosas. Silêncio total. Quando eu já me sentia submergir, os garçons pousaram as bandejas e aplaudiram. As demais pessoas os imitaram. O rapaz se levantou sorrindo, segurou as rosas, me abraçou e beijou. Mais aplausos. Foi a glória.
"Se aquela loura tinha alguma dúvida quanto a seu namorado", disse Bárbara, "agora não deve ter nenhuma".
De volta a São Paulo entreguei a Décio o comprovante do prêmio, comentei pormenores da cerimônia, o encontro com os amigos queridos e, por último, contei-lhe a história do restaurante. "Foi uma cena relâmpago, muito aplaudida. Nada mais apropriado para um especialista em teatro."
Décio gostou da história. Mas no final perguntou: "E você conhecia aquele rapaz?". "A questão não é essa", respondi desconcertada, "foi por causa das rosas vermelhas". E tratei de mudar de assunto. Seria difícil explicar o ocorrido longe do oásis fresco do restaurante, no espaço de gratuidade onde tudo foi possível, onde a insensatez da separação pôde guardar em seu interior o delicado equilíbrio do encontro.
VILMA ARÊAS, 79, é professora de literatura da Unicamp e autora de "Vento Sul" (Companhia das Letras).