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    A canonização do "bom reaça"

    NELSON ASCHER

    23/08/2015 02h09

    RESUMO Avesso à politicagem acadêmica, Merquior buscou a vida diplomática como caminho para pensar livremente. Dono de saber enciclopédico e leitor onívoro, deixou obra clara, que facilitou a atividade de outros críticos. Apontado após sua morte como uma espécie de "bom reaça", nunca foi particularmente direitista.

    Arquivo José Guilherme Merquior/É Realizações Editora
    Merquior (à esq.) e sua filha Julia com Alexandre Eulalio em Veneza
    Merquior (à esq.) e sua filha Julia com Alexandre Eulalio em Veneza

    Algumas décadas atrás, um brasileiro que quisesse se manter em dia com a cultura internacional tinha de ser milionário, diplomata ou exilado político. A carreira diplomática permitiu a José Guilherme Merquior beneficiar-se do que as universidades ofereciam de melhor –grandes professores (Lévi-Strauss, Ernest Gellner), centros de pesquisa e bibliotecas– sem ter de se submeter à sua ideologia ou politicagem interna.

    Não se tratava de desprezo – como atestam suas teses, doutoramentos e o ingresso na Academia Brasileira de Letras– pelas formalidades e instituições, mas, sim, da constatação de que, nas disciplinas humanísticas, universidade e universalismo haviam se tornado antônimos, enquanto a liberdade de pensamento dera lugar ao dogmatismo e à pregação.

    O que o havia preparado para reconhecer precocemente tais reveses fora formar-se no Brasil que existiu entre o fim da ditadura Vargas e o golpe de 1964, uma época em que a maioria dos pensadores e produtores culturais ainda acreditava que sua esfera fosse a da liberdade ou, pelo menos, se comportava como se assim fosse.

    Quando, em 1964, a direita tomou as rédeas do poder político, as facções mais determinadas da esquerda valeram-se do ensejo para perseguir e isolar divergências e/ou discordâncias no âmbito da cultura, usando cinicamente a ditadura como açoite para castigar desafetos, que chamavam (mentirosamente quase sempre) de delatores, colaboracionistas etc.

    Desde então, as opiniões político-ideológicas (mas não só) da classe ou categoria artística e intelectual tornaram-se tão homogêneas quanto refratárias ao menor desvio. Se outrora a intelectualidade tinha um leque de opiniões bem mais amplo e variado que o da classe média, o que se vê agora é o oposto. Ao optar, pois, por uma carreira que o manteria longamente fora do país, Merquior pode muito bem tê-lo feito não só para seguir atualizado como também porque, com o clima intelectual brasileiro dia a dia mais avesso ao pluralismo, ele trabalharia melhor num ambiente similar àquele no qual se formara.

    BICHO-PAPÃO

    Em todo caso, suas principais posições, pontos de vista e princípios tampouco se alteraram significativamente até sua morte, em 1991. E, se no começo dos anos 60, estes não o levavam a ser considerado particularmente direitista (nem era mesmo; nunca foi), 30 anos depois opiniões iguais ou parecidas o converteriam, aos olhos da intelectualidade nacional, no bicho-papão fascista ou pior.

    Sucede que era o pano de fundo –o cenário ou o próprio ambiente– que havia se movido para a esquerda. Morto, ele foi logo canonizado como o "bom reaça" e usado, por seu turno, para fustigar os "maus reacionários" ainda vivos. Hoje corre o risco de ser endeusado porque a esquerda o combateu injusta e equivocadamente.

    Sua obra –que é o que conta– subdivide-se em dois grandes blocos: o da política investigada no sentido amplo e o da literatura em geral, pois ela é que ocupa o centro de suas preocupações estéticas.

    Estudioso inteligente e erudito, tinha entre suas virtudes duradouras a capacidade incomum de realizar um tipo particular de "tradução". Primeiro, examinava impiedosamente alguns autores ou pensadores em voga e tidos como difíceis e mostrava que isso se devia menos à complexidade que à complicação intencional. Decifrava, então, seu jargão acadêmico, desenovelava-lhes o empolamento linguístico e reordenava cada texto de acordo com o bom senso, traduzindo, assim, a produção do "mandarinato" para a língua dos mortais, algo que (como fez exemplarmente com Foucault) bastava em geral para revelar a nudez dos monarcas de ocasião.

    Já o que ele tinha de leitor onívoro, infinitamente paciente, seu estômago de avestruz e dedicação monástica às letras e à cultura eram características mais úteis a algumas tarefas que a outras.

    Merquior não era impaciente ou preguiçoso, nem injusto, passional ou volúvel o bastante para ocupar nichos importantes na crítica –e convém salientar que há circunstâncias nas quais cada qual desses supostos vícios se converte numa virtude indispensável.

    Nem sua trajetória dava a entender que almejasse se tornar um descobridor de novos valores, redescobridor de antigos injustamente esquecidos, revolucionador de paradigmas e cânones, árbitro do gosto ou censor ideológico. Sua inclinação era mais a de aperfeiçoar a ordem existente que a de alterá-la radicalmente e, na hora de optar entre dois escritores, era provável que ficasse com ambos, uma atitude mais conciliatória do que discriminatória.

    Felizmente, tinha talento inato para pôr ordem na casa, organizar, sistematizar, abrir as janelas, trazer clareza para a discussão toda, inclusive no campo da poesia, que intimida ou expõe ao ridículo quem se meta a discuti-la sem preparo. Bem mais que a maioria dos críticos e até dos poetas brasileiros atuais, conhecia seus recursos técnicos, era capaz de descrever seu funcionamento formal detalhado e assim por diante.

    Mas é verdade, também, que sua abordagem nem sempre ia além e quando, após a construção de tão elaborado trampolim, esperava-se o grande salto ornamental... Nada. Ou muito pouco. Menos, em todo caso, que as "sacadas" ou "insights" a que chegam às vezes críticos que, equipados não com sua erudição enciclopédica, mas apenas com intuição e empatia, têm a qualificação rara e inefável de ser do ramo.

    APOGEU

    Enquanto crítico literário, ele pode ser visto no apogeu de suas energias em dois livros: "De Anchieta a Euclides "" Breve História da Literatura Brasileira" e "Verso Universo em Drummond".

    Não é trivial dizer que ambos figuram entre o que de melhor se produziu em suas respectivas categorias e que ambos, além de prazerosamente legíveis, são –ou deveriam ser– leitura obrigatória.

    O primeiro resume com extrema competência e elegância o que gente menos hábil faria de maneira maçante num espaço várias vezes maior. É importante observar que o autor não altera em quase nada a visão mais ou menos consensual da história literária nacional, isto é, ele reconhece os valores reconhecidos, acata a periodização previamente demarcada, endossa em linhas gerais relações de causa e efeito antes estabelecidas.

    Nada é muito questionado e muito menos revolucionado, mas tudo acaba (re)ordenado da melhor, mais nítida e econômica maneira possível. Um volume assim permite, ademais, entrever que, nesse caso, os momentos mais felizes do autor foram aqueles durante os quais se preparou para escrevê-lo, pois parece que sua máxima paixão existencial sempre consistiu em ler de cabo a rabo todos os livros, visitar todos os museus, contemplar demoradamente todas as telas e esculturas, ouvir todas as sinfonias e concertos.

    É tentador imaginar que tenha aceito tal tarefa antevendo com prazer a enxurrada de leituras que o aguardava, leituras que a maioria dos demais tomaria como desafio ou tortura. Impunha-se também a necessidade de organizar racionalmente o material inteiro –e, tendo em vista seus talentos, isso não era mais que continuação do deleite anterior por outros meios.

    Sua voracidade de leitor insaciável –bem como de colecionador e/ou historiador– transparece claramente no resultado final e é mesmo capaz de contaminar o leitor, despertando nele a vontade de comprar e ler as obras mais improváveis, como, por exemplo, os "Diálogos das Grandezas do Brasil" –e isso não é pouco.

    Por vezes, o crítico parece prestes a romper com o consenso para se lançar rumo ao novo, ao desconhecido –por exemplo, quando, ao contrário dos antecessores imediatos, chama atenção para a importância do barroco na literatura brasileira. Logo em seguida, porém, começa outro capítulo e não se toca mais no assunto.

    Quanto a seu livro sobre Drummond (escrito década e meia antes da morte do poeta), esse tampouco é em essência diferente. A obra do poeta e seus poemas específicos são muito bem esmiuçados, mas as análises elaboradamente descritivas pouco têm de realmente iluminador ou instigante, menos ainda de nuançadamente valorativo e nada de muito surpreendente. Quase nenhum grande paralelo é traçado, por exemplo, entre o mineiro e outros poetas mundo afora, e há diversas perguntas interessantes que nem sequer são feitas.

    De certo modo, "Verso Universo" serviria antes para dispensar outros críticos de uma trabalheira preparatória com a obra do poeta, permitindo-lhes passar logo para as fases seguintes de seus estudos.

    Vale dizer: boa parte da crítica e da historiografia literária de Merquior é um trabalho minucioso, dedicado e eminentemente útil.

    Do que contam seus amigos e conhecidos, ele era extremamente generoso e se desdobrava para ajudar colegas intelectuais em dificuldades, especialmente os esquerdistas que estavam sendo ou corriam o risco de ser perseguidos pelo regime militar.

    Talvez fosse similar a tarefa que reservava para sua obra: a de ajudar e facilitar o trabalho de outros críticos e historiadores da literatura. Isso, ela pode sem dúvida fazer. E muito bem.

    NELSON ASCHER, 57, é poeta e tradutor, autor de "Parte Alguma" (Companhia das Letras).

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