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    Atrevido, Merquior foi uma figura central

    ROBERTO SCHWARZ

    23/08/2015 02h08

    Quando conheci Merquior, em 1969, ele era um jovem secretário de embaixada em Paris. Diplomata formado no período democrático, anterior ao golpe, ele não se curvava às restrições impostas pela ditadura e tratava de manter a amizade e a conversa com intelectuais de esquerda, com os quais tinha interesses e bibliografia em comum. No ambiente policial que reinava, essa independência, certamente honrosa, requeria alguma coragem.

    Com o tempo, Merquior evoluiu para o ataque à esquerda, cujas ideias entretanto o interessavam vivamente, levando-o a posições paradoxais. Assim, em plena ditadura, ele publicou um panorama das posições estético-sociais de Marcuse, Benjamin e Adorno, cheio de assuntos avançados, que para os militares seriam tabu. Era um atrevimento, mas um atrevimento com cobertura, pois a tese do trabalho era de que esses autores representavam o atraso, bem ao contrário de Heidegger –o que salvo engano invertia tudo.

    Com estratégia parecida, sempre em nome da razão, Merquior polemizava contra o marxismo, a psicanálise e a arte moderna, numa espécie de crítica ao pensamento crítico e à negatividade, ou seja, a tudo que apontasse para além da ordem burguesa. Resultava daí uma espécie desconcertante de guerrilha a favor do establishment, ou de conformismo combativo.

    A massa de referências artísticas, teóricas e históricas que Merquior mobilizava em seus estudos fazia dele um caso à parte em nossa crítica. Não estávamos acostumados a ver os nossos autores submetidos a uma reflexão tão numerosa e cosmopolita.

    Pode ser que houvesse alguma desproporção entre esse aparato conceitual imponente e os resultados da análise, mas não há dúvida de que a leitura da crítica de Merquior ajudava e de que ele foi uma das figuras centrais de minha geração.

    Dito isso, a literatura e as ideias para ele contavam mais que o resto. A sua conversa inesgotável, sempre interessante e civilizada, que jorrava como uma força da natureza, era um espetáculo memorável.

    ROBERTO SCHWARZ, 76, é crítico literário e escritor, autor de "A Lata de Lixo da História" (Companhia das Letras).

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