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    Diretor Frank Castorf põe Wagner na cena vulgar do capital

    LUIZ FERNANDO RAMOS

    23/08/2015 02h02 Erramos: o texto foi alterado

    RESUMO Montagem das quatro óperas de "O Anel do Nibelungo" causa controvérsia em apresentações no Festspielhaus criado por Wagner em Bayreuth. O diretor Frank Castorf ambientou as óperas, inspiradas em mito germânico, em cenários vulgares que evocam o capitalismo, sendo vaiado pela plateia wagneriana.

    Bayreuther Festspiele/Enrico Nawrath
    O motel à beira da Rota 66 é um dos cenários da irônica montagem de Frank Castorf para o Ciclo do Anel
    O motel à beira da Rota 66 é um dos cenários da irônica montagem de Frank Castorf para o Ciclo do Anel

    Viva a vaia. Primeiro de agosto último, Bayreuth, Alemanha. Quase 2.000 pessoas acabam de assistir ao "Anel do Nibelungo" de Richard Wagner (1813-83), ciclo de quatro óperas que somam mais de 15 horas de música, no Festspielhaus criado pelo compositor e para onde, todo ano no verão, acorrem em peregrinação fiéis admiradores do mundo todo.

    Em meio às palmas entusiásticas recebidas pelas cantoras e cantores e, principalmente, pelo maestro russo Kirill Petrenko, surge no palco o diretor da montagem, o alemão Frank Castorf. A mudança é instantânea e irrompe uma vaia ensurdecedora. Acompanhado de sua equipe técnica, Castorf não se faz de rogado e encara a plateia por vários minutos, com desafiante tranquilidade.

    Andreas Thies, um antiquário de Stuttgart frequentador do Festspielhaus em Bayreuth há 30 anos, assistiu às duas outras temporadas do mesmo ciclo na versão de Castorf, em 2013 e 2014. Ele diz ter se surpreendido de as vaias terem sido mais fortes agora do que na primeira estreia, quando o diretor também foi apupado longamente.

    Em 2015, de fato, mais da metade da plateia aplaudiu Castorf, tentando em vão abafar os apupos. Era o reconhecimento de uma encenação extraordinária, na contramão das montagens convencionais da obra mais famosa de Wagner, e que oferece uma visão delirante e corrosiva do mito do Anel, difícil de ser engolida pelos wagnerianos mais conservadores.

    RECUSAS

    A história de Bayreuth está cheia de recusas radicais. A bem da verdade, o primeiro escândalo ocorreu há 139 anos, quando, no dia 13 de agosto de 1876, o Festspielhaus foi inaugurado com o mesmo ciclo do "Anel do Nibelungo", dirigido pelo próprio Wagner. O fracasso foi tão retumbante que o teatro fechou por seis anos, e o compositor teve que vender cenários e figurinos da montagem para pagar dívidas.

    Desde então, a história desse teatro lendário já teve muitos altos e baixos, inclusive uma fase de total cooptação pelo regime nazista. Mas isso teve pouco a ver com Wagner. Ele morreu um ano depois da estreia de "Parsifal", em 1882, que marcou seu primeiro e único triunfo em vida naquela casa.

    A responsável indireta por essa aproximação de Hitler foi sua viúva, Cosima, que viveu até 1930 e nunca escondeu seu antissemitismo ferrenho. A direta foi sua nora Winifred, casada com Siegfried, filho de Wagner e Cosima, e que promoveu a entrega do Festspiel- haus ao nazismo.

    Talvez por essa história ser uma das máculas da família Wagner, e por extensão do teatro de Bayreuth, ainda hoje controlado por ela, neste ano foi organizada uma mostra nos jardins que circundam o recinto, expondo em painéis, com fotos e textos em alemão e inglês, os 60 músicos judeus que ou foram impedidos de trabalhar lá ou foram presos e acabaram mortos em campos de concentração.

    A ofensiva dos Wagner por manter o prestígio de Bayreuth vai muito além de assumir culpas passadas –o que nos traz de volta a Castorf, o "enfant terrible" do teatro alemão, que há 23 anos dirige o Volksbühne de Berlim.

    Seus espetáculos antidramáticos, ou pós-dramáticos, como o teórico alemão Hans-Thies Lehmann os chancelou, têm sempre um tom anticapitalista ou antiburguês, o que não teria, a princípio, nada a ver com o público de Bayreuth, que disputa ingressos caríssimos e dificílimos de comprar.

    Foi um neto de Wagner, Wolfgang (1919-2010), que ao lado do irmão Wieland dividiu a condução do teatro no pós-Guerra, quem percebeu a necessidade de chamar diretores controversos para voltar a torná-lo relevante.

    O melhor exemplo do acerto dessa política foi o Ciclo do Anel dirigido pelo francês Patrice Chéreau (1944-2013) em 1976. O escândalo, dizem, foi muito maior do que este provocado por Castorf, mas hoje aquela montagem tornou-se clássica. Difícil prever se o mesmo ocorrerá com a quase debochada versão de Castorf.

    ROTA 66

    Sob o signo da ironia, o ciclo do Anel de Castorf já começa arrebentando. Em geral, a primeira cena de "O Ouro do Reno", que se inicia na nascente das águas onde três jovens virgens guardam um tesouro, é apresentada como uma paisagem natural. Na versão de Castorf, as ninfas do Reno são garotas de programa que tomam sol em cadeiras de praia ao lado da piscina suja de um motel de beira de estrada, na porção texana da famigerada Rota 66.

    O cenário do sérvio Aleksandar Denic colabora decisivamente com Castorf nas quatro óperas, servindo-se de um palco giratório que permite embaralhar espaços e tempos distintos numa mesma massa cenográfica. O mesmo se passa com os vídeos, com operadores de câmera imiscuídos entre os cantores e projetando em telas seus detalhes ampliados, ou com cenas pré-gravadas, que criam uma simultaneidade de planos narrativos superpostos.

    O ciclo original começa com o roubo do ouro das águas do Reno por um anão e termina com a devolução de um anel, que tornava poderoso e infelicitava quem o usasse, às mesmas águas.

    Wagner se baseou na mitologia germânica medieval e mobilizou deuses e gigantes, heróis mortais e imortais, dragões e pássaros falantes numa trama rocambolesca que se estende por várias gerações. Mas é um tempo mítico, circular, não histórico, que roda em falso, imóvel na infinidade.

    O que Castorf faz, sem deixar de contar com nenhuma das notas musicais compostas por Wagner e sem prescindir de nenhum de seus versos, é introduzir o tempo da história real, jogando com a sucessão de várias etapas do capitalismo: desde o fim do século 19, e os primeiros poços de exploração do petróleo em Baku, no Azerbaijão, até a contemporânea bolsa de mercadorias de Nova York.

    A forma como esses lugares e tempos se empastelam e se superpõem nos giros dos espaços cenográficos não é linear, e cada uma das óperas do ciclo tem suas combinações bizarras.

    Em "Ouro do Reno", as ações dos deuses ocorrem no quarto superior do motel de beira de estrada, onde eles se espremem para resolver suas pendências, enquanto o mundo ínfero dos anões, em que se forja o anel em torno do qual tudo ocorrerá, localiza-se em um trailer no deserto.

    Na ópera seguinte, "As Valquírias", o ambiente é o de uma primitiva torre petrolífera de madeira, em que militantes anarquistas são abatidos a gás, enquanto, contígua, uma cena rural de celeiro e blocos de feno ambienta a gestação do herói que poderia salvar o mundo da destruição.

    Em "Siegfried", retorna-se aos Estados Unidos, mais especificamente ao sopé do monte Rushmore, nas Montanhas Rochosas. Só que, em vez das caras de presidentes norte-americanos, as rochas imensas têm esculpidas nelas as caras de quatro ícones do comunismo –Marx, Lênin, Stálin e Mao Tse-tung. Na outra face do palco, uma réplica da Alexanderplatz, praça da antiga Berlim Oriental e hoje símbolo da cidade reunificada. Ali o deus supremo Wotan "sofre" a felação de um travesti, e crocodilos passeiam distraídos.

    Finalmente, em "Crepúsculo dos Deuses", o espaço lembra os becos e fundos de prédios nova-iorquinos, e a ação gira em torno de uma barraca de churrasco grego. O trailer está de volta como moradia cigana de Sigfried e Brünhilde, o casal dominante do ciclo, enquanto numa cidade europeia um luminoso evoca uma famosa fábrica de plásticos da Alemanha Oriental. Quando tudo dá errado e o anel retorna às ninfas do Reno, agora mulheres fáceis em seu Mercedes-Benz conversível, não há fogo redentor queimando o palácio dos deuses.

    É como se Castorf empilhasse o máximo de referências da cultura norte-americana, como auge de vulgaridade e miséria espiritual, confrontando-a, em registro de pastiche, com a solenidade da ópera wagneriana. O diretor fricciona essa tradição e espelha a decadência espiritual da própria Alemanha, mergulhada num capitalismo contumaz e americanizada a olhos vistos.

    À ironia se agrega a melancolia, e o ouro destrutivo da saga narrada no palco interpela a plateia burguesa de Bayreuth. Um improvável Wagner de esquerda escorre do sorriso cáustico de Castorf diante das vaias.

    Nota: A terceira e última série do ciclo nesta temporada vai de sexta, 21, a quarta, 26 de agosto. É possível concorrer aos ingressos da temporada do ano que vem, quando será apresentado pela última vez o Ciclo do Anel de Castorf, em três séries, com início nos dias 26 de julho, 7 de agosto e 20 de agosto. Os ingressos podem ser pleiteados a partir de 14 de setembro, por correio (endereçado a Bayreuther Festspiele - Kartenbüro - Postfach 100262 - 95402 - Bayreuth) ou através do site bayreuther-festspiele.de

    LUIZ FERNANDO RAMOS, 58, é professor de história e teoria do teatro do departamento de artes cênicas da ECA-USP.

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