• Ilustríssima

    Sunday, 05-May-2024 05:21:11 -03

    Poemas e fragmentos de Juliano Garcia Pessanha

    JULIANO GARCIA PESSANHA
    ilustração DANIEL BUENO

    06/09/2015 02h04

    SOBRE O TEXTO Os trechos aqui publicados foram extraídos de "Testemunho Transiente", a sair pela Cosac Naify em 17 de setembro. No livro, em que confluem diversos gêneros –ensaio, poesia, ficção–, articulam-se questões das diversas áreas de pensamento em que seu autor (São Paulo, 1962) circula, como a psicanálise e a filosofia.

    Daniel Bueno

    QUANDO ELES IAM VIAJAR

    A folhagem na casa abandonada e, ao longe, o ruído das crianças. Já não me ocupo com as cidades tristes da memória. (Não houve.) Eu sou a concha que recolhe esses ruídos. A vantagem de ter sido assassinado, a vantagem de ter ficado só "" quando a voragem do sonho aos outros levou numa viagem (ainda incompreendida) –é a de que a vida, esse avesso, percorre meu "interior" sem nenhuma resistência. Não há impedimento, pois, se algo fui –além do puro alheio que congreguei em indistinções de fim e de início–, então fui uma água escorrendo noutro tempo.

    TÃO TRISTE COMO ELE

    Sonhei aquela tarde no sofá e aqueles sonhos me encheram de ânimo. De como são belas algumas cidades que sobreviveram a si mesmas! Cidades que dormem à margem e que estão suavemente excluídas do barulho dos acontecimentos. Cidades onde é possível sofrer em paz e errar por esquinas desabitadas se detendo em algum muro manchado de poente. Cidades impregnadas de ontem e de tristezas onde é possível, ainda, encontrar uma mulher estranha e solitária; mulher cujo enigma ainda não foi despedaçado e que nos põe a sonhar, a sonhar alguma dor antiga, enquanto se percorre um beco que vai dar na orla de onde se avistam "as tais ilhas perdidas". Montevidéu: teu aroma preenche uma galáxia; as outras cidades do Ocidente são propícias apenas à febre do esquecimento. Eu vi teu adolescente de espinhas caminhar insciente debaixo da sombra das árvores do porto, eu vi teu velho diante do mar (e o mar recolhia os restos de um pobre deus disperso). Se teus filhos emigraram pros países- ricos, pros países-escândalo, teu velho permaneceu atado ao ápice da imagem, colado à lonjura do dia dourado onde a alma foi lida. Montevidéu: jamais andei no teu dentro, mas tua parte de sombra andou na minha pobreza e eu velei teus silêncios de destino delicado.

    SEGREDO DE UMA ESCRITA I

    Foi antes de o caminho se bifurcar. Foi antes do teu acontecimento. Eu era um prisioneiro da distância, um inimigo do significado. Nada possuía além do ímpeto de tomar de assalto o "meu" mundo duvidoso: eu anotava tudo a fim de assegurar-me a figuração de um rosto, mas crescia sempre a suspeita de que o material narrado se forçava sobre uma terra onde jamais estive. Eu buscava algum epicentro debaixo da minha pele e, por isso, eu tinha os meus diários; eles não eram comparáveis à velhinha que abre suas caixas de memória, mas à viagem do exilado buscando residência.

    SEGREDO DE UMA ESCRITA II

    Na amplidão de noites que jamais passavam, eu estive debruçado sobre os meus diários. Eles eram um diálogo da gota com o mar: se a gota era minha vida na fronteira do sumiço, o mar era minha autoconsciência; enorme e escandalosa. Enquanto a mão me escrevia, fabulando um rastro mitológico e inventando o ar onde eu ousasse respirar, o olho "cruel" a tudo assistia. Sua lucidez vigiou a mão-demiúrgica, conduzindo-a até o "cansaço do sentido" e o fracasso da autocriação. Foi assim que o olho preparou tua chegada (ela foi um vento de desconhecimentos) e, por um instante –consentindo–, o olho se fechou!

    SEGREDO DE UMA ESCRITA III

    Quando eu morava no lado de fora, o ato de escrever me fingia a ilusão do dentro. Assim, durante anos, fui anotando tudo em meus diários a fim de provar que eu vivia alguma vida: banhos prolongados, masturbações infinitas, o som de jornais polpudos esparramando-se no quintal, os desenhos que eu me fazia no braço com esferográficas, as noitadas, onde eu alcançava níveis de caos e intensidade bastante altos para minha década-cidade, as calamidades histriônicas que me levavam à consumação abrupta de litros de cachaça, a contagem de hematomas e de gânglios; tudo isso eu anotava, e essa vida anotada nos diários ardia na chama indefinida da falta de uma vida. Fazendo tudo que escrevia e escrevendo tudo que tentava fazer, eu era um bloco só, uma argamassa única de escrita e de existência.

    O olho assistia à argamassa e pairava sempre a presença da dúvida, a pendência do desassossego. Aconteceu? Comigo ou não?

    Afinal, o que encobria essa "doença" misteriosa?

    Foi assim que vaguei por Trieste num verão. (Não me lembro de ainda não conhecer o grande Svevo.) Mergulhei no cais e entrei numa farmácia. Uma mulher muito bonita, de boca semiaberta, me atendeu. Errei, de madrugada, pelos canais de Trieste e, quando olhei uma janela iluminada, fui raptado pelo sopro de uma turbulência onírica. Antes do amanhecer começou a chover, e eu não pude ver a chuva molhando a cidade sem tirar toda a minha roupa para senti-la em mim também.

    Eu tinha dezenove.

    Eu jamais estive em Trieste.

    Testemunho Transiente
    Juliano Pessanha
    l
    Comprar

    SEGREDO DE UMA ESCRITA IV

    Quando eu cheguei ao mundo nada mais tinha o benefício da chegada. A "rugosidade da vida" tinha sido esticada até a extremidade onde o jorro das horas dá lugar à eternidade da cena. Assim, ameaçado pela linha de um ocaso, busquei a literatura e debrucei-me nos diários: neles eu escrevi a crina avermelhada do cavalo, o confuso espelho d'água na tormenta, a família curda fugindo na montanha, a calma no porto abandonado e o camelo devorado pela tribo. Um dia, ao pressentir a intensidade de um hino, eu disse também a pétala desgarrada, mas tudo que achei foi a ausência da flor.

    ÁPICE

    Porque o amor transcendeu a ilusão amorosa, eu pude ver teu rosto: ele era a solidão de uma fogueira num descampado imenso e sem contorno"¦

    Ao testemunhar tua aparição, descobri que a proximidade, a mais intensa, se dá junto da distância mais distante.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024