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    Estrela da Ópera de Pequim estreia nos Estados Unidos

    DAVID BARBOZA
    DO "NEW YORK TIMES", EM PEQUIM

    06/09/2015 02h04

    Quando "A Lenda da Cobra Branca" estrear, quarta-feira no David H. Koch Theater, no Lincoln Center, Nova York, as audiências norte-americanas terão sua primeira oportunidade de contemplar Zhang Huoding, uma das maiores estrelas da Ópera de Pequim, que estará fazendo sua estreia nos Estados Unidos.

    Zhang, 44, uma mulher esbelta e delicada, é uma megaestrela em Pequim. Canta para teatros lotados na capital chinesa e Xangai, cativando as audiências, entre as quais legiões de fãs jovens, com seus olhos pesarosos, entonações vocais profundas e movimentos graciosos de artes marciais. Em 2007, ela foi a primeira estrela da Ópera de Pequim a fazer uma apresentação solo no Grande Salão do Povo, que serve de sede ao governo central chinês.

    Wang Lei - 1.set.15/Xinhua
    A atriz Zhang Huoding em apresentação para a imprensa em Nova York
    A atriz Zhang Huoding em apresentação para a imprensa em Nova York

    Zhang será tema de um documentário planejado pelo aclamado diretor Wong Kar-wai, de Hong Kong, que em 2013 capturou a elegância das artes marciais chinesas em seu filme "O Grande Mestre". E o governo chinês está promovendo as apresentações dela no Lincoln Center como parte de um esforço de "soft power" (poder brando) cujo objetivo é conquistar boa vontade no exterior por meio de apresentações e espetáculos que ilustrem a rica herança cultural chinesa.

    "Ela tem uma qualidade especial, muito evocativa, no palco, uma aura e charme que parecem encantar a audiência", disse David Wang, estudioso de literatura na Universidade Harvard que acompanha há muito a carreira de Zhang. "Mas também conta com uma tremenda capacidade vocal, que ela emprega de um jeito que tem algo de discreto, melancólico".

    Zhang agora dedica boa parte de seu tempo a lecionar na Academia Nacional de Artes Teatrais Chinesas, em Pequim, e vê suas apresentações em Nova York como forma de promover e preservar uma sofisticada forma de arte diferente de qualquer outra modalidade de arte cênica do planeta.

    "Eu e os demais artistas estamos tentando ao máximo permitir que mais pessoas aprendam sobre a Ópera de Pequim", ela declarou em entrevista. "Somos dedicados a essa forma de arte, e queremos que outras pessoas reconheçam sua beleza".

    Sua jornada para os palcos, conta, começou na província de Jilin, no nordeste do país, onde ela cresceu como parte de uma família de artistas da ópera tradicional. Seu pai era membro de uma trupe itinerante que interpretava uma forma regional de ópera chamada Pingju, comum na província de Hebei; e seu irmão mais velho começou a estudar para a Ópera de Pequim quando ainda criança.

    Zhang tinha cerca de nove anos quando se apaixonou pelos sons e ritmos da Ópera de Pequim –os gongos, os instrumentos de percussão feitos de madeira e as melodias pesarosas tocadas com o jinghu, uma espécie de violino chinês afinado em tom muito agudo. "A Ópera de Pequim tinha efeito calmante sobre mim, e continua a ter", ela diz.

    Mas para seu desgosto, nos cinco anos seguintes ela não conseguiu obter admissão a uma academia regional de treinamento. Depois de insistir com os pais para que eles pagassem por aulas particulares, ela foi enviada a Pequim para estudar com um casal idoso.

    "Lembro-me de ir à casa deles e dormir no sofá por três meses", conta Zhang. "O casal de velhinhos acordava cedo e ia ao parque, e eu os acompanhava. Lá eles me ensinavam técnicas. Foi o começo do meu estudo da Ópera de Pequim".

    Pouco depois, aos 15 anos, relativamente tarde para um estudante da ópera, ela se matriculou em uma escola em Tianjin, mas apenas depois que seu pai escreveu uma carta ao presidente da escola explicando a paixão de sua filha pela Ópera de Pequim.

    O programa de estudos era fatigante, e o custo das aulas representava uma imensa carga para os seus pais, cuja renda era modesta. Zhang conta que quando estava estudando, tinha dúvidas sobre seu talento e capacidade de encontrar emprego depois de se formar, já que a disputa pelos postos disponíveis nas trupes de Ópera de Pequim era feroz.

    Zhang diz ter pensado em desistir, mas que trabalhava arduamente, mesmo aos domingos, quando os outros descansavam. Depois de se formar, em 1989, foi convidada a fazer parte de uma trupe militar da Ópera de Pequim, e começou a treinar sob a orientação de um dos mais renomados artistas do gênero, Zhao Rongchen, que ensinou a ela o estilo da Escola Cheng, um dos quatro grandes estilos a emergir no começo do século 20.

    O estrelato surgiu anos depois, na metade dos anos 90, quando ela já era parte da principal trupe nacional da Ópera de Pequim. O mundo da ópera começou a reagir com entusiasmo ao seu trabalho depois que ela montou uma apresentação especial da Ópera de Pequim no renomado Teatro da Arte Popular em Pequim.

    "Ela sempre foi muito diligente", disse Li Jinping, que trabalhou com Zhang por mais de 20 anos e é um dos diretores artísticos de suas apresentações em Nova York. "Ela não para de trabalhar e dedica mais tempo à preparação do que qualquer outro artista. E desenvolveu características únicas, especialmente em seu canto".

    Zhang manteve a fama na China a despeito de sua aversão por publicidade; ela raramente concede entrevistas e muitas vezes evita outras aparições públicas que não seu trabalho de palco. Vive discretamente em Pequim com o marido, um empresário, e a filha de três anos de idade.

    Zhang diz dedicar a maior parte de sua energia à sua arte e ao ensino, na mais importante escola de ópera chinesa tradicional, a Academia Nacional de Artes Teatrais Chinesas, em Pequim.

    Em Nova York, ela se apresentará acompanhado por um grupo de astros nacionais de primeiro nível da ópera, entre os quais Zhang Yaoluan, que trabalha com ópera há 60 anos. A trupe inclui também cerca de 20 alunos da Academia Nacional, e diversos dos discípulos de Zhang.

    Em noites consecutivas, Zhang e o elenco interpretarão dois clássicos: "A Lenda da Serpente Branca", sobre um caso de amor entre uma serpente e um homem, contestado por um monge budista; e "A Bolsa de Joias", sobre uma jovem rica mas generosa que passa por momentos difíceis.

    O que as audiências norte-americanas verão é uma forme de arte apreciada há mil anos, com contos morais envolvendo figurinos elaborados, cenas de combate, acrobacias e movimentos e gestos estilizados que se assemelham a pantomimas. Os movimentos são sugestivos e simbólicos - cada gesto do corpo aparentemente codificado e coreografado, e acompanhado por ritmos de percussão, gongos e cordas de afinação aguda. Os elaborados figurinos podem sinalizar que o personagem é um guerreiro, um dirigente e estudioso, ou um palhaço.

    A popularidade da Ópera de Pequim está em declínio, e os astros futuros do gênero talvez jamais se tornem tão famosos quanto Zhang. Li Shiqiang, autor de numerosos livros sobre a ópera chinesa, diz que embora as óperas tradicionais não devam desaparecer de todo, em parte por conta do apoio do governo, algumas das melhores tradições e histórias vêm sendo perdidas constantemente.

    "Sempre que um ator morre, parte da tradição morre com ele por causa da maneira pela qual essas pessoas foram treinadas, e das peças que elas memorizaram", diz Li. "Muitas das emoções e dos gestos não estão descritos nos roteiros".

    Nos anos 30, quando Mei Lanfang, um dos grandes astros da Ópera de Pequim, se apresentou em Nova York, as coisas pareciam diferentes. Havia um senso de que a ópera tradicional chinesa poderia funcionar fora do país e até mesmo influenciar o cenário artístico mundial.

    Na época, os maiores astros da Ópera de Pequim eram homens como Mei Lanfang, que interpretavam os chamados papéis "dan", femininos - articulando gestos, movimentos de mãos e canto femininos em tons estranhos, agudos, muitas vezes cantando com os dentes cerrados.

    Em entrevista na semana passada, Zhang lamentou que a grande era da Ópera de Pequim possa estar chegando ao fim.

    Ela disse que os jovens de hoje nem sempre se dispõe a acatar o rigor, disciplina e sacrifícios necessários a se tornarem grandes artistas. E afirmou que gostaria de se tornar uma inspiração para a próxima geração.

    "No passado, eles jogavam água no chão nos dias de inverno, para criar uma superfície congelada, e os alunos eram forçados a praticar seus movimentos no gelo escorregadio", ela disse. "Se você era capaz de se mexer com graça no gelo, se sairia bem no palco. Agora, se não houver carpete nos estúdios, todo mundo vive caindo. Isso dificulta muito desenvolver um grande mestre".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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