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    Produções britânicas recorrem cada vez mais à ajuda de um dramaturgo

    SARAH HEMMING
    DO "FINANCIAL TIMES"

    09/09/2015 13h00

    "O sonho seria: você escreve um primeiro rascunho, o entrega ao teatro, o diretor artístico diz que é uma obra genial, o diretor da peça perde o fôlego e todo mundo fica deslumbrado com o texto", diz o teatrólogo Simon Stephens. "Mas acredito que isso nunca, nunca aconteça".

    E é aí que entra o dramaturgo. No complicado processo de levar uma peça da página ao palco, a função desse profissional pode ser crítica. Mas quem exatamente é essa figura nebulosa? As definições da função podem ser turvas como fumaça. E embora os grandes teatros alemães tenham todo um departamento dedicado a esse trabalho e um profissional da dramaturgia designado para cada produção, no teatro britânico o dramaturgo costumava ser uma criatura comparativamente rara. Até recentemente.

    "Song From Far Away", a nova peça de Stephens, que está em cartaz no Young Vic, de Londres, sob a direção de Ivo van Hove, conta com um dramaturgo (da mesma forma que aconteceu com "Carmen Disruption", outra de suas peças, produzida no teatro Almeida). E há um dramaturgo trabalhando na produção de "Measure for Measure", a próxima produção no calendário do Young Vic, e outro trabalhando em "Jane Eyre", que está perto de estrear no National Theatre. Enquanto isso, no Home, um novo centro artístico em Manchester, a alemã Petra Tauscher se tornou dramaturga residente. O que esses profissionais fazem, pois? Esse cargo está em ascensão no Reino Unido? E, se estiver, será que representa uma mudança na maneira pela qual se faz teatro?

    Para Ben Power, diretor artístico assistente e dramaturgo residente do National Theatre, parte do papel é servir como embaixador do autor na sala de ensaios - especialmente se o autor, por motivos de mortalidade, não puder estar presente em pessoa.

    "O dramaturgo, para mim, fica entre o diretor, o processo e o texto", ele diz. "Não se trata, portanto, de um papel típico de administração literária, o que acontece frequentemente de maneira bem abstrata, distante do processo de ensaio. A função envolve na verdade pensar sobre como encenar um texto, e descobrir que efeito exatamente o autor pretende causar na audiência. No caso de "Homem e Super-Homem", de George Bernard Shaw [que o National Theatre encenou este ano], por exemplo, a função envolvia cortar e dar forma ao texto com o objetivo de encontrar clareza e servir às necessidades específicas da produção".

    Espera lá, você talvez esteja pensando - isso não é função do diretor? Mike Akers, dramaturgo na produção do National Theatre para "Jane Eyre", aponta que um diretor tem muitas tarefas a realizar durante os ensaios. "Já eu fico isolado das outras pressões e me concentro apenas no desenvolvimento da história e na maneira pela qual será percebida como trabalho de teatro, em contraposição à sua percepção como romance. O dramaturgo serve como voz de alerta para o diretor".

    Para compreender a função, você precisa compreender o que é um dramaturgo, diz Zoë Svendsen, que trabalhou com o diretor Joel Hill-Gibbins em uma montagem adoravelmente insana de "The Changeling", no Young Vic, e no momento o ajuda com "Measure for Measure".

    "A dramaturgia é a estrutura do trabalho", explica Svendsen. "É como um andaime - algo que você não vê mas conecta tudo mais. E para todos os efeitos esse andaime é a maneira pela qual a atenção da audiência é mantida... Quando você analisa a fundo a estrutura de peças renascentistas [como "The Changeling"], percebe que elas eram feitas de maneira diferente das obras modernas; não demonstram tanto interesse por uma psicologia de causa e efeito. É preciso uma abordagem diferente para explorar de que maneira essas estruturas poderiam funcionar no palco".

    "No caso de 'Measure by Measure', pesquisamos muito a Bíblia", ela acrescenta. "E descobrimos que existe um padrão constantemente mutável de histórias bíblicas [na peça]. Não é o caso de comunicar essas pesquisas à audiência diretamente, mas sim o de usá-las para compreender de que forma a peça funciona, e com isso encontrar uma maneira própria de montá-la".

    Quanto mais experimental a produção, mais fundamental pode ser o trabalho detalhado de base. O dramaturgo belga Bart van der Eynde trabalhou por 20 anos com o diretor Ivo van Hove no Toneelgroep Amsterdam, colaborando em montagens marcantes como "The Roman Tragedies" e "The Antonioni Project". Ele foi o dramaturgo na soberba montagem londrina de van Hove para "Panorama Visto da Ponte", de Arthur Miller (que será transferida para a Broadway no final deste ano). Para ele, "dramaturgia é acima de tudo fazer as perguntas certas".

    "A primeira grande discussão que tivemos quanto a 'Panorama Visto da Ponte' era se Eddie estava ciente de seus sentimentos incestuosos pela sobrinha", recorda van der Eynde. "Decidimos que não era o caso. Assim, quais são as consequências disso na peça e de que maneira podemos mostrar a situação?"

    A descrição pode soar bem abstrata, mas o embasamento psicológico preciso da produção é que lhe conferia seu lancinante poder. "Ivo é o diretor que conheço que requer os preparativos mais longos e detalhados da parte de seu dramaturgo", disse van den Eynde. "Mas isso serve para construir um conceito que lhe dará segurança para criar uma espécie de liberdade no espaço de ensaio".

    Ele acrescenta que essa preparação revela seu valor durante os ensaios. À medida que a produção evolui, o dramaturgo pode servir como interlocutor. "Alguém certa vez definiu o dramaturgo como 'um rei sem coroa'. Gosto bastante dessa imagem, porque expressa o fato de que você não precisa defender o seu reino; você não defende um elemento específico da produção. Se você é ator, defende suas falas; se é o encarregado da iluminação, defende suas luzes. Mas o dramaturgo nada defende exceto a produção. E isso dá muita segurança a um diretor".

    Mas de que maneira esse processo funciona com uma peça nova? Afinal, nesse caso não é preciso pesquisar o que o autor queria dizer com alguma coisa - basta perguntar a ele. Van den Eynde é o dramaturgo na montagem de "Song From Far Away", de Stephens, e explica que o seu trabalho continua a ser o de fazer perguntas, mas de maneira que leve um autor a esclarecer questões, reformular seu texto e aprofundá-lo. Em "Song From Far Away", um monólogo sobre o pesar coproduzido pelo Toneelgroep Amsterdam, o processo ajudou a desenvolver a significativa participação de personagens extrapalco.

    Por que o posto tem presença muito mais firme em outros países europeus? A maioria dos comentaristas aponta para as sutis diferenças estéticas e estruturais entre os sistemas de teatro. Em termos amplos, na cultura que produziu Shakespeare, o autor e a palavra tenderam a ter papel central na obra, e os diretores muitas vezes têm por origem um ambiente literário, universitário. Nos teatros alemães, em contraste, há muito predomina uma abordagem conceitual.

    Mas o teatro britânico está mudando. "Vejo cada vez mais influência mútua entre os estilos teatrais", observa Power. "Hoje produzimos espetáculos no National Theatre que requerem titereiros, especialistas em ação aérea, designers de luz e som, compositores, coreógrafos. E o diretor cada vez mais orquestra linguagens diferentes. Assim, ter um especialista que responda pelo texto é provavelmente boa ideia".

    "A convenção britânica vem sendo a de que o autor responde pela dramaturgia", ele acrescenta. "Mas vivemos um momento interessante porque isso está mudando. Todo teatrólogo que conheço admite que o processo de criação de uma peça tem múltiplos autores, e o dramaturgo serve como editor ou bibliotecário, monitorando as funções da linguagem dentro dessa colaboração. O que empolga no teatro britânico é a possibilidade de síntese das duas [tradições]".

    Stephens defende avidamente esse tipo de cooperação. Mas recorda que já se assustou quando uma dramaturga chegou para uma conversa trazendo uma cópia de sua peça toda marcada em amarelo e vermelho.

    "Perguntei o que eram as cenas marcadas em amarelo, e ela respondeu que eram as cenas em que cortaríamos algumas falas. Quando perguntei sobre as cenas marcadas em vermelho, ela respondeu que eram as que seriam cortadas completamente". Ele ri. "Mas existe uma energia muito revigorante no processo - ele o leva a pensar no que está fazendo, como escritor".

    "Song from Far Away", de 2 a 19/9, "Measure for Measure", de 1º/10 a 14/11, as duas no Young Vic, Londres (youngvic.org). "A View from the Bridge", Lyceum Theatre, Nova York, de 21/10 a 21/2 (shubert.nyc/theatres/lyceum); "Jane Eyre" de 8/9 a 10/1, National Theatre, Londres (nationaltheatre.org.uk)

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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