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    Leia trecho de livro inédito de Vladimir Safatle

    VLADIMIR SAFATLE

    13/09/2015 02h07

    RESUMO O trecho aqui reproduzido faz parte do livro "O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo", a sair pela Cosac Naify no dia 25. O autor sustenta que, embora normalmente separe-se a esfera do afeto da esfera social, a superação dessa dicotomia é possível e foi sugerida pelo próprio Freud.

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    Normalmente, acreditamos que uma teoria dos afetos não contribui para o esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos. Aceitamos que a dimensão dos afetos diz respeito à vida individual dos sujeitos, enquanto a compreensão dos problemas ligados aos vínculos sociais exigiria uma perspectiva diferente, capaz de descrever o funcionamento estrutural da sociedade e de suas esferas de valores. Os afetos nos remeteriam a sistemas individuais de fantasias e crenças, o que impossibilitaria a compreensão da vida social como sistema de regras e normas.

    Tal distinção não seria só uma realidade de fato mas uma necessidade de direito. Pois, quando os afetos entram na cena política, eles só poderiam implicar a impossibilidade de orientar a conduta a partir de julgamentos racionais, universalizáveis por serem baseados na procura do melhor argumento.

    No entanto, um dos pontos mais ricos da experiência intelectual de Sigmund Freud é a insistência na possibilidade de ultrapassar tal dicotomia. Freud não cansa de nos mostrar quão fundamental é uma reflexão sobre os afetos, no sentido de uma consideração sistemática sobre a maneira como a vida social e a experiência política produzem e mobilizam afetos que funcionarão como base de sustentação geral para a adesão social. Maneira de lembrar a necessidade de desenvolver uma reflexão social que parta da perspectiva dos indivíduos, não se contentando com a acusação de "psicologismo" ou com descrições sistêmico-funcionais da vida social.

    O que não poderia ser diferente para alguém que insistia em afirmar: "Mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natureza".

    Mas, em vez de ver sujeitos como agentes maximizadores de utilidade ou como mera expressão calculadora de deliberações racionais, Freud prefere compreender a forma como indivíduos produzem crenças, desejos e interesses a partir de certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer à norma, adotando tipos de comportamentos e recusando repetidamente outros.

    A perspectiva freudiana não é, no entanto, apenas a expressão de um desejo de descrever fenômenos sociais a partir da intelecção de seus afetos. Freud quer também compreender como afetos são produzidos e mobilizados para bloquear o que normalmente chamaríamos de "expectativas emancipatórias". Pois a vida psíquica que conhecemos, com suas modalidades de conflitos, sofrimentos e desejos, é uma produção de modos de circuito de afetos.

    Por outro lado, a própria noção de "afeto" é indissociável de uma dinâmica de imbricação que descreve a alteração produzida por algo que parece vir do exterior e que nem sempre é constituído como objeto da consciência representacional. Por isso, ela é a base para a compreensão tanto das formas de instauração sensível da vida psíquica quanto da natureza social de tal instauração. Fato que nos mostra como, desde a origem, "o 'socius' está presente no Eu". Ser afetado é instaurar a vida psíquica através da forma mais elementar de sociabilidade, essa sociabilidade que passa pela "aiesthesis" e que, em sua dimensão mais importante, constrói vínculos inconscientes.

    Tal capacidade instauradora da afecção tem consequências políticas maiores. Pois tanto a superação dos conflitos psíquicos quanto a possibilidade de experiências políticas de emancipação pedem a consolidação de um impulso em direção à mutação dos afetos, impulso em direção à capacidade de ser afetado de outra forma.

    Nossa sujeição é afetivamente construída, ela é afetivamente perpetuada e só poderá ser superada afetivamente, a partir da produção de uma outra "aiesthesis". O que nos leva a dizer que a política é, em sua determinação essencial, um modo de produção de circuito de afetos, da mesma forma como a clínica, em especial em sua matriz freudiana, procura ser dispositivo de desativação de modos de afecção que sustentam a perpetuação de configurações determinadas de vínculos sociais.

    Nesse sentido, o interesse freudiano pela teoria social não é fruto de um desejo de construir teorias altamente especulativas sobre antropogênese, teoria das religiões, origem social dos sentimentos morais e violência. Na verdade, Freud é movido, a sua maneira, por um questionamento sobre as condições psíquicas para a emancipação social e por uma forte teorização a respeito da natureza sensível de seus bloqueios.

    Por outro lado, ao tentar compreender as modalidades de circulação social dos afetos, Freud privilegia as relações verticais próprias aos vínculos relativos às figuras de autoridade, em especial às figuras paternas. São basicamente esses tipos de afeto que instauram a vida psíquica através de processos de identificação. O que não poderia ser diferente para alguém que via nesta forma muito peculiar de empatia ("Einfühlung") chamada "identificação" o fundamento da vida social.

    CRÍTICAS

    Tal privilégio dado por Freud a essas relações verticais foi motivo de críticas das mais diversas tradições.

    Pois, aparentemente, em vez de dar conta do impacto da autonomização das esferas de valores na modernidade e dos seus modos de legitimação, Freud teria preferido descrever processos de interação social que nunca dizem respeito, por exemplo, aos vínculos entre membros da sociedade em relações horizontais, mas apenas a relação destes com a instância superior de uma figura de liderança ou a relações entre membros mediadas pela instância superior do poder. Como se os sujeitos sempre se reportassem, de maneira direta, a instâncias personalizadas do poder, como se as relações sociopolíticas devessem ser compreendidas a partir das categorias de relações individuais entre dois sujeitos em situação tendencial de dominação e servidão. Estratégia que implicaria um estranho resquício de categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da lógica do poder. O que nos levaria a crer, por exemplo, que a expressão institucional do Estado teria sempre a tendência a se submeter à figura de uma pessoa singular na posição de líder.

    No entanto podemos dizer que Freud age como quem afirma que a relação com a liderança é o verdadeiro ponto obscuro da reflexão política contemporânea. Há uma demanda contínua de expressão do poder em liderança, há uma lógica da incorporação que vem da natureza constitutiva do poder na determinação das identidades coletivas. Isso está presente tanto em sociedades ditas democráticas quanto nas autoritárias.

    De fato, inexiste, em Freud, uma esfera política na qual a relação com a autoridade não seja poder constituinte das identidades coletivas devido à força das identificações, daí a tendência a fenômenos de incorporação. À primeira vista, este parece ser o resultado necessário, mas nem por isso menos problemático, da tendência freudiana a não livrar a figura do dirigente político de analogias político-familiares ou teológico-políticas.

    Essa centralidade da discussão acerca da natureza da liderança no interior da reflexão sobre o político não deve ser avaliada, no entanto, como a expressão natural da pretensa necessidade de os homens, enquanto animais políticos, se submeterem a figuras de autoridade, como se o homem fosse um animal que procura necessariamente um mestre, mesmo que Freud em alguns momentos faça afirmações nesse sentido.

    Na verdade, Freud intuitivamente percebe como a soberania, seja ela atualmente efetiva ou virtualmente presente enquanto demanda latente, é o problema constitutivo da experiência política, ao menos dessa experiência política que marca a especificidade da modernidade ocidental.

    Contrariamente a teóricos como Michel Foucault, Freud não acredita em alguma forma de ocaso do poder soberano em prol do advento de uma era de constituição de individualidades a partir de dinâmicas disciplinares e de controle social. Ele simplesmente acredita que o poder soberano, mesmo quando não se encontra efetivamente constituído na institucionalidade política, continua em latência como demanda fantasmática dos indivíduos.

    A recorrência contínua, mesmo em nossa contemporaneidade, de sobreposições entre as representações do dirigente político, do chefe de Estado, do pai de família, do líder religioso, do fundador da empresa deveria nos indicar que estamos diante de um fenômeno mais complexo do que regressões de indivíduos inaptos à "maturidade democrática". Compreender a natureza dessa demanda pelo lugar soberano do poder, assim como a força libidinal responsável por sua resiliência, é uma tarefa que Freud, à sua maneira, se impôs.

    No entanto não se trata apenas de compreendê-la mas também de pensar caminhos possíveis para desativá-la, caminhos para –se quisermos usar um sintagma analítico– atravessar tal fantasia. Mas, tal como no trabalho analítico, não é questão de crer que, "uma vez desvelada a armadilha libidinal do político, devemos abandoná-la à história caduca de seu delírio ocidental, substituindo-lhe uma estética ou uma moral". Pois tal crença transformaria a psicanálise em um modelo de crítica que crê poder contentar-se com os desvelamentos dos mecanismos de produção das ilusões sociais, na esperança de um desvelamento dessa natureza ter a força perlocucionária capaz de modificar condutas.

    Seríamos mais fiéis a Freud se compreendêssemos o processo de travessia como indução à mutação interna no sentido e no circuito dos afetos que fantasias produzem. Freud age como quem explora as ambiguidades de nossas fantasias sociais, como quem desconstrói (e a palavra não está aqui por acaso) a aparente homogeneidade de seu funcionamento, permitindo assim que outras histórias apareçam lá onde acreditávamos encontrar apenas as mesmas histórias.

    Não se trata de uma crítica pela qual ilusões sociais seriam denunciadas a partir de normatividades possíveis, ainda latentes, que serviriam de fundamento para outra forma de vida em sociedade. Como se fosse o caso de desqualificar uma normatividade atual a partir da perspectiva de uma normatividade virtual a respeito da qual Freud seria o enunciador eleito.

    A crítica freudiana é uma espécie de abertura à possibilidade de transformação das normas através da exploração de sua ambivalência interna –no nosso caso, transformação da soberania através da exploração de efeitos ainda inauditos do poder.

    Há algo na hipótese do poder soberano que não pode ser completamente descartado como figura regressiva de dominação; há algo em seu lugar que parece pulsar para além dos efeitos de sujeição que tal poder parece necessariamente implicar, bastando lembrar tanto as discussões sobre a soberania popular quanto a constituição da soberania como lugar da subjetividade emancipada.

    Isso talvez explique por que haverá em Freud dois paradigmas distintos de figuras de autoridade. Uma deriva das fantasias ligadas ao pai primevo, anunciada inicialmente em "Totem e Tabu", e que alcançará "Psicologia das Massas e Análise do Eu". Outra, que é quase a negação interna da primeira e nos abre espaço para uma reavaliação da dimensão política do pensamento freudiano, aparecerá de forma tensa nesta obra-palimpsesto e testamentária que é "O Homem Moisés e a Religião Monoteísta".

    VLADIMIR SAFATLE, 42, é professor de filosofia da USP e colunista da Folha.

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