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    resenha

    Pretensa saga da imigração galega se perde em adjetivações

    LUÍS AUGUSTO FISCHER

    13/09/2015 02h05

    Saudado em seu lançamento, 30 anos atrás, como um romance significativo, inscrito na tradição do romance histórico sob abordagem feminina, um pé no épico e outro na narrativa intimista, "A República dos Sonhos" [Record, 736 págs., R$ 90] envelhece mal.

    No centro de sua estrutura está uma família de origem galega no Rio de Janeiro: o patriarca Madruga, burguês bem-sucedido; sua mulher, Eulália, com ares de dama; cinco filhos vivos; e uma neta. Como figura evocada, o avô de Madruga, Xan, além de outros parentes da cidadezinha de Sobreira. Fora disso, Venâncio, amigo de infância de Madruga, tão imigrante quanto ele, mas socialista, ambos chegados ao Brasil na segunda década do século 20, e Odete, a empregada doméstica. Não são tantos personagens assim, se levarmos em conta que se trata de uma pretensa saga, em três gerações e 700 páginas.

    A neta, Breta, e Madruga tomam a palavra, alternando-se com um narrador em terceira pessoa, para repassar lances dessa trajetória, que se mantém em certa tensão desde a primeira página, quando ficamos sabendo que Eulália vai morrer logo. Mas o que mais fazem os três é comentar e ajuizar sobre pessoas, histórias e valores envolvidos. Em tal proporção há juízos e análises, e tal é a natureza dos diálogos, sem exceção, que "A República dos Sonhos" exige ser pensado na família dos romances de tese, em perspectiva determinista, apresentada em longas perorações.

    Isso pesa muito. O livro é menos as ações ou a subjetividade dos personagens e muito mais esses julgamentos, expostos numa abundância que sufoca o leitor, bloqueado para realizar mentalmente os sugestivos quadros do enredo. Apenas uma ou outra vez o romance cresce, como em trechos de relato vivo da trajetória de Madruga, nos quais temos a carnadura do personagem, e não essa dominante visão de fora sobre ele.

    A alternância dos narradores, que poderia imprimir variedade ao andamento, pouca diferença faz, porque as três vozes são rigorosamente iguais, se exprimem com o mesmo vocabulário, a mesma sintaxe, a mesma obsessão por adjetivar, dramatizar, realçar em excesso: "Breta sentia-se refletida no avô. Também ele a deblaterar contra uma solidão da qual já não poderia arrancar, como antes, gritos de triunfo e nacos de poder"; Madruga tinha a "crença de ser a vida uma batalha campal onde se impunha desfraldar a bandeira dos vencedores".

    Às vezes, os qualificativos brigam entre si: "É a ambição um sangue sujo e alvissareiro em nossos peitos". Venâncio também sofre do mal da falta de clareza: ele diz que, no Brasil, "poderia conquistar o angustiante sortilégio de esboçar as linhas" do seu "mapa pessoal".

    O texto lembra os de sua contemporânea Isabel Allende –a narrativa da sucessão de gerações vista a partir da vida de mulheres, a ênfase nos detalhes cotidianos, as premonições, os vaticínios etc. A isso se soma o esforço, infrutífero, por conferir um ar vetusto a Madruga e a seu avô, apresentado como grande contador de histórias, mas que não conta nenhuma delas. Algo disso se vê na tentativa de formular frases de sabedoria ancestral, como "só as palavras essenciais comovem de verdade".

    À semelhança de outros romances da mesma geração que manifestam apetite para o painel histórico –há exemplos de Márcio Souza, Moacyr Scliar, Luis Antonio de Assis Brasil, Tabajara Ruas–, também em "A República dos Sonhos" o leitor encontra boa e instrutiva matéria para sentir e entender criticamente o mundo, neste caso, o da imigração galega. Mas aqui precisa ultrapassar, a alto custo, a espessa capa de juízos e a torrente da adjetivação.

    LUÍS AUGUSTO FISCHER, 57, é professor de literatura na UFRGS e crítico.

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