• Ilustríssima

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    Leia trecho de romance de António Lobo Antunes

    ANTÓNIO LOBO ANTUNES
    ilustração MARIANA SERRI

    20/09/2015 02h05

    SOBRE O TEXTO O trecho nesta página corresponde ao início de "Não é Meia-Noite Quem Quer". O romance, cujo título foi extraído de um verso do poeta francês René Char, foi publicado originalmente em Portugal em 2012 e sai no Brasil pela Alfaguara em 19/10.

    Mariana Serri

    Acordava a meio da noite com a certeza do mar a chamar-me através das persianas fechadas, voltava a cabeça na direção da janela e sentia-o a olhar para mim conforme o som dos pinheiros a olhar para mim e as vozes dos meus pais, no fim do corredor, a olharem para mim, tudo me olhava no escuro repetindo o meu nome, perguntava

    – O que é que eu fiz?

    e silêncio, o mar e os pinheiros desapareciam da janela, para onde foram, vocês, e os meus pais calados, se perdermos o mar e os pinheiros não fica quase nada, uns telhados, uns caniços, a areia, sem marcas de gaivotas, de manhã muito cedo, apenas lixo da vazante que os banheiros não varreram ainda, madeiras, algas, gasóleo, eu cinco anos, os meus irmãos sete e nove, não vou falar do meu irmão mais velho, não se fala do meu irmão mais velho, aí está ele a sorrir-me

    – Menina

    e a descer de bicicleta para a praia comigo no quadro que me magoava um bocadinho, feliz e com medo

    – Não vamos cair promete

    e não caíamos, ao saltar do quadro continuava a magoar-me um bocadinho e depois passava, colocavam diante das ondas uma bandeira verde num mastro, de tempos a tempos um paquete ao longe, o meu pai ficava a dormir, de jornal no peito, no sofá, quer dizer percebia-se que dormia pela boca aberta, não tinha cabelos brancos nem estava doente, não tinha morrido, a minha mãe, que conversava com a vizinha de toldo

    – Vou passar a vida a repetir para não a trazeres

    de bicicleta enquanto não partires uma perna à menina não descansas o meu irmão não surdo e o meu irmão surdo atiravam coisas um ao outro e o meu irmão surdo, gritava-se-lhe o nome e não se virava para nós, começou a chorar, os meus cabelos já não pretos como os do meu pai, pintados de loiro, a minha mãe para a vizinha de toldo, a limpar as bochechas do meu irmão surdo com a toalha

    – Já viu a minha cruz?

    no extremo da praia, sobre as rochas a seguir à lagoa, uma construção abandonada, com a frase Alto da Vigia Mariscos & Bebidas a desbotar-se na cal, onde a seguir ao jantar os gatunos se reuniam a planearem roubarem-nos, a minha mãe

    – Tomara eu que vos roubassem a todos para ter paz e sossego

    embora não se distinguisse ninguém com uma perna de pau e sacos para nos meterem lá dentro, vi fazer isso com os gatos pequenos e o saco mexia-se, mergulhavam o saco no tanque da roupa e ninguém se mexia nele, despejavam aquilo numa cova no ângulo do quintal a mandarem-nos

    – Vão-se embora

    só o meu irmão surdo ficava, tentando levantar a terra com os pés, eu para ele

    – Não te aflijas

    e um melro em duas notas nos pinheiros, qual o motivo de se afligir por um saco de que tombavam pingos e a gata por ali farejando, não tive filhos, eu, quer dizer tive um e perdeu-se, em que cova o meteram, o meu marido

    – Não o meteram em cova nenhuma não era um bebé ainda

    enquanto a bicicleta subia devagar a ladeira para casa, lembro-me do som da campainha, a do carteiro mais forte, cheguei de manhã para me despedir da casa, na semana que vem entregamos as chaves, as árvores ofendidas comigo, que esses sentimentos notam-se

    – Que maldade deixares-nos

    não vão olhar-me esta noite, fingem esquecer quem fui, compartimentos sem mobília, um pedaço de papel para a direita e para a esquerda no soalho, restos de palha de colchão no lugar da minha cama, as mesmas formigas de outrora na cozinha mas as prateleiras sem púcaros, um pacote de açúcar, fechado com uma mola de roupa, sozinho no armário, e a recordação do meu pai à procura da garrafa na despensa, eu para a sua pressa que deixara de existir, mais os dedos trémulos a desprenderem-se-me da memória

    – Acabaram-se as garrafas pai

    e o meu pai, teimoso, a espreitar uma arca, a tentar uma caixa, a desistir fitando-me de madeixas desalinhadas, não me habituo ao meu loiro, há anos que faleceu, qual o motivo de regressar aqui, senhor, logo hoje, para me atormentar com a sua sede mais o lenço com o qual cuida limpar a testa e nem a cara apanha, agita um adeus sem alvo, reflecte um momento a oscilar, termina por esconder-se no bolso, semelhante a um gato no saco, daqui a pouco imóvel, abre-se uma cova no quintal e desaparece para sempre à medida que o resto de você tropeça na sala, a minha mãe para a vizinha de toldo, a apontar-nos

    – Não me servem de nada

    a minha cruz, dona Liberdade, um surdo, uma inútil, outro que se mata, outro louco, não mencionando o marido com os fumos do álcool

    – Tira-me as aranhas da roupa

    uma tropa fandanga, amiga, no Alto da Vigia Mariscos & Bebidas pareceu-me que um gatuno mas, reparando melhor, um arbusto sacudido pelo vento do mar, dois ou três burros magríssimos que os ciganos esqueceram, pisando o mundo com a fragilidade dos cascos, em silêncio como o mar e os pinheiros, mirando-me desiludidos

    – Vais deixar-nos a sério?

    ANTÓNIO LOBO ANTUNES, 73, escritor português, Prêmio Camões em 2007, é autor de "Comissão das Lágrimas" (Alfaguara).

    MARIANA SERRI, 33, artista plástica, coordena a partir do dia 22/9 ateliês de arte para adultos e crianças na Casa Tombada (acasatombada.com).

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