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    A face escura de Iberê Camargo

    FELIPE SCOVINO

    27/09/2015 02h07

    A partir dos anos 1960, a repetida má apropriação da arquitetura, das linguagens construtivas e da bossa nova como novos modelos e símbolos do país no exterior os reduziu, como elementos de propaganda, aos grandes clichês sobre a nossa cultura.

    A referida tríade da modernidade brasileira representa criações artísticas e culturais da maior originalidade e importância na compreensão do que é o Brasil hoje, mas não são as únicas referências.

    Há outra atmosfera densa, trágica, lenta, suja, pessimista, que convive lado a lado com todo o (suposto) otimismo embutido nesses outros acontecimentos.

    Três artistas em particular exploram, em suas obras, uma perspectiva menos solar, justamente porque escapam de falar sobre um lugar específico.

    Oswaldo Goeldi, Farnese de Andrade e Iberê Camargo, guardadas as devidas especificidades poéticas de cada um, seriam um desvio dentro de uma leitura crítica produzida de fora para dentro que articula uma visão preconcebida sobre o que representaria a identidade brasileira.

    O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebe até 1/11 a exposição "Iberê Camargo: Um Trágico nos Trópicos", com curadoria de Luiz Camillo Osorio, a qual reflete essa atmosfera mais ruidosa, inacabada e menos festiva.

    Abrir a exposição com "No Vento e na Terra II" (1992) é escancarar a consciência da finitude. Um homem desolado, absorto em seu próprio desespero e deitado em meio a uma atmosfera árida e sombria configura-se como uma imagem potente sobre a condição e o confronto do sujeito com o mundo. Pintada dois anos antes de o artista morrer, essa tela é uma espécie de conjunção dos atributos mais explorados em sua trajetória.

    Estão lá o desencanto, o abandono, o silêncio, a solidão e o desespero. A tragédia é o próprio acontecimento da vida. Parece não restar mais nada no mundo a não ser a própria consciência da sua "densidade existencial", como define Osorio.

    A violência e a voracidade na aplicação do óleo sobre a tela que marcam a sua pesquisa ganham uma suspensão nas últimas telas, como em "A Idiota" (1991), pois agora o que percebemos é uma fina camada de tinta, como um véu, que transmite uma sensação fantasmagórica à cena.

    Fabio Del Re
    "A Idiota" (1991)
    "A Idiota" (1991)

    Por outro lado, em "Mesa com Cinco Carretéis" (1959), notamos que o equilíbrio precário das figuras contido em sua última fase tem sua origem nas naturezas-mortas. Está lá a possibilidade de os carretéis virem a desmoronar, transformarem-se em pó, desfazerem-se.

    Em "Figura II" (1964) a sobreposição de óleo cria uma matéria espessa e densa que se revela metaforicamente como carnalidade. E a matéria, ambiguamente, nesse caso, revela e logo em seguida faz desaparecer a imagem de um sujeito, envolto em seu desespero.

    Nesse momento dois aspectos da dimensão trágica se fazem presentes: o caráter obsessivo e o fundo quase sempre escuro das pinturas. É curioso como as fases de sua produção recebem títulos como "estrutura", "forma" e "núcleo". Há uma livre associação com o corpo, ou com a sua divisão em partes, como se o processo de desmembramento ou de desfazer-se fosse inevitável para a compreensão de Iberê do sujeito e de seu lugar no mundo.

    Na série "Tudo te É Falso e Inútil" (1992), as figuras têm um olhar perdido que não consegue encarar o mundo e, por conseguinte, o espectador. Como nas peças de Beckett, o tempo não se esgota, pois é como se aquelas figuras estivessem condicionadas a uma incerteza da espera. Envoltas numa atmosfera angustiante, simplesmente se deixam ficar, na expectativa, contrária a todos os sinais, de que algo novo se produza.

    Não há o que aguardar, pois o encontro é consigo mesmo, com suas especulações, medos e todo o tipo de drama do cotidiano.

    Percebemos, pelo olhar das figuras que habitam suas telas, gravuras e desenhos exibidos na mostra, o que vigiam, guardam e sentem. Estão escancarados os seus desconfortos e um grito emudecido diante do estranhamento que os cercam. Como afirma o artista, "pinto porque a vida dói."

    FELIPE SCOVINO, 37, é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e crítico de arte.

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