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    O Brasil na encruzilhada

    VINICIUS MOTA
    ilustração PAULO MONTEIRO

    04/10/2015 03h40

    RESUMO Nem todas as nações, mesmo as que apresentam características favoráveis ao desenvolvimento, o alcançam de fato; muitas fracassam ou retroagem. São decisivas a política e a capacidade das instituições de cercear o uso do Estado por elites extrativistas. A boa notícia é que o Brasil tem condições de chegar lá.

    Reprodução
    Pintura de Paulo Monteiro para a ilustrissima 04out2015 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

    O que sustenta a prosperidade de uma nação? Há boas e más notícias para o Brasil nos estudos de vanguarda a respeito desse velho debate. A pior é que se tornar desenvolvido não parece ser destino inexorável de todos os países, tampouco da maioria deles.

    A via que leva da indigência à riqueza é de mão dupla e pode ser trilhada de volta. Nações pioram e fracassam.

    Ser dotado de recursos naturais em abundância, de traços culturais favoráveis ao empreendedorismo, de presciente tecnocracia ou até mesmo de uma população instruída, nada disso assegura o bilhete de entrada e de permanência no clube das sociedades avançadas.

    O segredo está nas instituições, em especial políticas, desenvolvidas no seio de cada nação ao longo do tempo. Elas podem ser inclusivas e facultar a todos, ou à grande maioria, a partilha de riscos e benefícios da aventura do progresso. Ou ser extrativistas, a serviço de uma elite.

    No primeiro caso, sustenta-se o desenvolvimento. No segundo, pode até ocorrer vultoso crescimento econômico em certos períodos, mas faltará fôlego para mantê-lo e renovar continuamente sua base tecnológica.

    Com esse enredo ambicioso, os professores James Robinson (Universidade de Chicago) e Daron Acemoglu (MIT) harmonizam, em "Por que as Nações Fracassam" (ed. Elsevier, 2012), linhas de pesquisa que há mais de 20 anos convergem para conclusões assemelhadas. Robinson e Acemoglu desfilam em seus currículos dezenas de palestras importantes realizadas pelo mundo, mas nenhuma no Brasil, o que explica muita coisa.

    A boa notícia, de todo modo, é que está nas mãos apenas da sociedade brasileira a chave para a arrancada rumo ao desenvolvimento. A resposta, como depende sobretudo da política, poderá ser rápida.

    Outra conclusão alvissareira é a de que o Brasil provavelmente já sofreu seu choque fundamental nesse sentido, com a democratização iniciada nos anos 1980. A China, cujo modelo extrativista em benefício da elite em torno do Partido Comunista dá sinais de esgotamento, terá de passar por uma revolução, talvez violenta, para seguir adiante. Nós não.

    Muito antes da democratização recente, a institucionalidade brasileira dava mostras de relativa resiliência e autonomia diante das investidas imperiais dos grupos que detinham o Poder Executivo. Pense na trajetória do Supremo Tribunal Federal e do Judiciário como um todo e na longa e pouco interrompida tradição de eleger legisladores direta e periodicamente, ou no também longevo percurso dos tribunais de contas.

    Os professores Marcus Melo (Universidade Federal de Pernambuco) e Carlos Pereira (FGV), que integram essa vanguarda global de pesquisas, mas são também menos debatidos por aqui do que merecem, calcularam em "Making Brazil Work" (Palgrave Macmillan, 2013) como as interações institucionais (oposição ativa, Judiciário, tribunais de contas, Ministério Público e imprensa) inibem, no nível estadual, a propensão dos governadores para distribuir privilégios com o dinheiro dos impostos.

    De volta à terminologia de Robinson e Acemoglu, o Brasil experimentou, ao longo de mais de cem anos, o que eles chamam de deriva institucional –pequenas alterações políticas que se acumulam e tornam uma sociedade, diferentemente de outras ao redor, propensa a embarcar num ciclo virtuoso de inclusão e desenvolvimento. A eclosão da democracia de massas, há 30 anos, pode ter sido a centelha de oportunidade que a História oferece, muitas vezes ao acaso.

    CICLO

    A entrada na democracia, entretanto, não é condição suficiente para a ativação do ciclo virtuoso e sustentável do progresso. Para tanto requer-se a maximização das instituições que promovem a inclusão, além da virtual erradicação das estruturas que permitem a certas elites, bem posicionadas no aparelho do Estado, locupletarem-se à custa da grande maioria da sociedade.

    Aqui estamos numa encruzilhada. Nações, vale frisar, regridem, empobrecem e desaparecem em razão das decisões políticas que tomam. O futuro brilhante do Brasil não está garantido. Nem sequer a manutenção do modesto conforto material de hoje está assegurada.

    Fatos recentes evidenciam que o Brasil atravessa uma espécie de Primavera das Instituições, em particular das encarregadas do combate ao abuso de poder.

    O cerco que sem cessar se fecha desde o processo do mensalão sobre políticos, lobistas, empresas e empresários conectados ao custeio ilegal de partidos –e a negociatas com empresas, contratos e normatizações estatais– é a exibição galante do princípio basilar das sociedades inclusivas. Todos são iguais diante da lei.

    A iminente manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU)acerca das manobras que possibilitaram despesas exorbitantes do Executivo federal no ano eleitoral de 2014 poderá fincar-se como outro marco nesse percurso. Governar de costas para o Orçamento, fazer o diabo para reeleger-se, quebrar um banco para viabilizar o sucessor, todas essas práticas ainda corriqueiras poderão tornar-se bem mais arriscadas após a decisão do órgão auditor.

    Nem tudo foram flores, entretanto, na caminhada da nação brasileira desde a redemocratização. O presidente Fernando Henrique não resistiu à tentação –tampouco o constrangimento institucional foi forte o suficiente para detê-lo– de alterar as regras com o jogo em andamento para beneficiar-se, ele mesmo, da reeleição.

    Eis uma manobra típica da institucionalidade extrativista, que mostra como o custo de ficar fora do poder ainda beira o insuportável para grupos políticos influentes no Brasil. Anos depois, o país desestimulou os flertes de Lula da Silva com o modismo regional de estender ainda mais a estadia de presidentes no cargo.

    Resistimos nas regras eleitorais, mas pulamos com gosto na onda de capitalismo estatal e populismo que engolfou a América do Sul na década passada, auge do boom chinês que multiplicou a renda de nações especializadas em produtos do campo, da mina e do poço.

    XISTO E PRÉ-SAL

    Nos Estados Unidos deu-se conta do potencial do gás retirado do xisto (por um tipo de mineração cujos custos caíram dramaticamente devido a avanços tecnológicos) mais ou menos no mesmo período em que o Brasil atestou a enorme capacidade do pré-sal.

    Lá não se cogitou de nada parecido com um "novo marco nacional da energia do xisto". As regras básicas do jogo eram conhecidas e não foram alteradas. Mais de duas centenas de companhias lançaram-se na empreitada e com ela lucraram ou assumiram prejuízos.

    Já nações com alto teor de instituições extrativistas agem como o Brasil após o advento do pré-sal: subvertem as balizas normativas da atividade, aumentam barreiras à entrada de competidores, reforçam monopólios e enfiam governos na operação empresarial.

    Na abordagem inclusiva, pode haver fracasso ou sucesso. No exemplo do xisto nos Estados Unidos, ocorreu êxito notável, com ganhos de eficiência e redução de custos difundidos rapidamente por toda a cadeia produtiva e por toda a sociedade, seja sob a forma de maior volume de renda e empregos, seja via serviços públicos, beneficiados com a elevação da receita tributária.

    Na outra opção, como demonstram as bilionárias ruínas do experimento brasileiro, o fracasso é certo. Uma das características da abordagem extrativista é impor um teto ao avanço tecnológico e produtivo. Os grupos que em torno do Estado predam a maioria da população não se dão ao luxo de arriscar-se num processo franco de competição e renovação técnica, capaz de riscá-los do mapa. Valem-se da influência sobre a determinação e a aplicação das regras para proteger-se.

    De 2009 a 2014, o Brasil experimentou o maior retrocesso, em tempos de democracia de massas, na estrada que conduz ao desenvolvimento.

    Regras e condições de competir foram postas de pernas para o ar nos setores do petróleo, da eletricidade, dos automóveis, dos portos, das ferrovias, das estradas, dos aeroportos, do etanol e dos frigoríficos, entre tantos.

    O governo erigiu ciclópicos orçamentos paralelos em empresas e bancos estatais e manipulou um sem-número de normas de acesso a mercados e de tributação. Pôs-se a controlar preços fundamentais e omitiu a degringolada da situação fiscal o quanto pôde. O campo de jogo –que deveria ser plano, seguro e conhecido de todos os interessados– tornou-se um labirinto cujo percurso dependia de acesso à elite no poder.

    O resultado foi a paralisia prolongada da produtividade, associada a uma destruição de capital de escala inédita na história brasileira, além da corrupção.

    Seria tão fácil como errado culpar apenas o Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Lula, sua sucessora Dilma Rousseff ou até mesmo a chamada "nova matriz econômica" pelo desmantelo, cujo custo apenas começa a ser cobrado da grande maioria da população brasileira.

    Fosse correto o diagnóstico, a saída de cena desses fatores, já em curso, bastaria para inverter o sentido da marcha.

    O portento fáustico conduzido pelas gestões petistas contou com o entusiasmo e a participação de vários outros atores: empresários, corporações do setor público e do privado, oligarquias regionais, lideranças de quase todos os partidos, governadores, prefeitos, vereadores, deputados, senadores, intelectuais e jornalistas.

    Esse levante simultâneo de segmentos de elite em busca de proteção e privilégio foi como a ativação de um vírus encapsulado, que estava à espera de uma oportunidade para alastrar-se. Ele não regredirá facilmente.

    Erradicá-lo agora é fundamental para recolocar o país na rota da prosperidade. A alternativa será o mergulho na espiral de disparada inflacionária e instabilidade política que há uma geração não é vivenciada no Brasil, embora continue sendo ocorrência comum na vizinhança. Basta olhar para a Argentina e a Venezuela, nações fracassadas.

    VINICIUS MOTA, 43, é secretário de Redação da Folha

    PAULO MONTEIRO, 54, é artista plástico, lançou o livro "Paulo Monteiro: O Interior da Distância" (Cobogó) e expõe na galeria Mendes Wood DM até 21/11

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