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    ponto crítico

    Nanni Moretti capta rastros de fantasmas da Itália em novo filme

    CÁSSIO STARLING CARLOS

    18/10/2015 02h02

    Na primeira fase de seu reconhecimento como um herdeiro da grande família de cineastas italianos, já no ocaso do cinema de autor, Nanni Moretti foi confundido com um equivalente peninsular do humor à Woody Allen.

    A comicidade irônica combinada com a autoflagelação neurótica induzia essa associação. O fato de Moretti também protagonizar seus filmes e interpretar o mesmo tipo –cujo nome, Michele Apicella, repete-se de "Io Sono un Autarchico" (1976) a "Palombella Rossa" (1989)– sugeria simbiose semelhante à do autor-ator posta em prática por Allen em sua obra. O fato de ambos terem elaborado suas ficções seguindo chaves psicanalíticas reafirmava o parentesco.

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    O ator John Torturro em cena de "Mia Madre"
    O ator John Torturro em cena de "Mia Madre"

    No entanto a problemática moral no cinema de Moretti não se limita às motivações e à psicologia do personagem no molde americano. Os dilemas de seus personagens também evidenciam o esvaziamento progressivo de ideais outrora coletivos e revelam a incapacidade individual de reagir à redução da política ao espetáculo.

    Sua Itália já deixou há muito de ser a do neorrealismo, e a realidade de agora é a simulada nos "reality shows" dos canais de TV de Berlusconi. Fascismo, terrorismo, comunismo, catolicismo e irrealidade cotidiana são fantasmas que moldaram a face do país, e Moretti, como diretor ou na pele de Michele, capta seus últimos rastros.

    Em "Mia Madre, que foi exibido no Festival do Rio e deve estrear em 24/12, seu 12º longa em 40 anos, Moretti retoma o conflito entre fragilidade particular e nível alto de exigência na performance pública que introduzia desordem na eleição de um novo pontífice em "Habemus Papam" (2011).

    A crise está mais uma vez da primeira à última cena de "Mia Madre", só que amplificada. A primeira imagem, por exemplo, é a de um grupo de trabalhadores demitidos que protesta em frente ao portão de uma fábrica. Logo essa ação se revela uma encenação, parte de um filme que retrata os efeitos da crise econômica. Trata-se de um típico desencaixe narrativo de um cineasta que valoriza o desequilíbrio e a desarticulação entre partes e todo.

    No centro dessa ação reenquadrada, surge Margherita (Margherita Buy), cineasta de renome que parece irritada e desmotivada. Ao quebrar a ilusão do filme engajado, Moretti aproveita para lançar uma questão à tendência estética do pseudocumentário disseminada no cinema contemporâneo. "Você está do lado dos policiais ou dos manifestantes?", indaga a diretora ao operador de câmera que insiste em captar as imagens próximas aos corpos, em busca de uma suposta autenticidade.

    Na face ficcional do filme, o diretor retoma o problema da morte ou da diluição do cinema na era do apogeu do espetáculo e aproveita para questionar a aparência inofensiva do entretenimento. A chegada de Barry, o ator importado no qual John Turturro mescla insegurança e canastrice, reafirma o aspecto cansado da ficção, reduzida à repetição de tiques e truques.

    A mãe de Margherita está no leito de morte, e esse luto por antecipação esclarece em parte o estado de inação da personagem. Suas relações sentimentais com o pai da filha e com o amante também estão desfeitas. Entre a ficção do cinema e a realidade da morte, Moretti mostra sua cineasta imersa num limbo mental, dispersa em situações concretas ou desperta em momentos oníricos.

    Ao lado dela, o irmão, interpretado pelo próprio diretor, acompanha, escuta e às vezes provoca, mas basta uma cena solo para revelar que ele também se encontra perdido e sem vontade. Em ambos se lê a distinção de Freud em "Luto e Melancolia": "No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu".

    Só que nessa zona cinzenta, em que tudo parece tomado pela síndrome de Bartleby, Moretti não diagnostica a crise apenas como fenômeno individual. De "Habemus Papam" a "Mia Madre" ele mostra que o gás paralisante se espalha cada vez mais no ar do tempo.

    CÁSSIO STARLING CARLOS, 51, é crítico de cinema da Folha.

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