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    Três poemas de João Bandeira

    JOÃO BANDEIRA
    ilustração JOÃO PINHEIRO

    25/10/2015 02h08

    SOBRE O TEXTO Estes poemas fazem parte de "Quem Quando Queira", a sair pela Cosac Naify. O livro será lançado no dia 9 de novembro, com leituras e sessão de autógrafos, a partir das 19h30, no Espaço Cult, em São Paulo.

    João Pinheiro

    1.

    Naquela cidade, bondes despreocupados, charretes

    macias e minicoopers multicoloridos vão e vêm, levando

    quem quando queira pelas colinas cheias de casas

    boas de morar, de onde se avista a baía e tanta gente

    andando à toa ou em bicicletas de todos os tipos

    por calçadas largas e gramados seguindo a beira do mar

    .

    Presídio lá significa um parque enorme em que se pode

    viver vizinho de Walt Disney na vila militar desmobilizada

    e ali ao lado no velho forte sob a ponte vermelha Kim Novak

    sã e salva do suicídio cuida do sono daqueles que vêm

    no fim de tarde tirar um cochilo numa das antigas

    camas brancas de soldados, cotidianamente refeitas

    .

    Nas praças, novos hippies explicam a yuppies imaturos

    como se safar de insônia crônica ou de terremotos

    financeiros, procurando a fortuna pelo bairro chinês

    e fazendo tudo caber na memória ou numa bolsa pequena

    que se consegue num pulo ao museu Henry Miller em Big Sur

    onde o homem da livraria distribui fatias do pão que ele fez

    .

    A motorista do trólebus nunca mais tem pressa e vai

    perguntando aos passageiros como eles têm passado

    se estão bem acomodados, e todos concordam com ela

    que o melhor trajeto é o que for mais longo e mais bonito

    enquanto minha mãe ensina cantando o caminho certo

    para San Jose a toda bela Helena ou Lady Marion renovada

    .

    Em toda parte, há yerba buena para males da alma ou

    do corpo, e limonada gelada é servida à vontade a qualquer

    um que se lembre de uma tirada certeira de Mark Twain

    e escreva no vidro da janela de um hotel com seu nome

    ou escolha um verso longo de Ferlinghetti e piche num muro

    de Ashbury, onde se vende a preço módico todo o rock do mundo

    .

    Passeatas pacíficas reivindicam diariamente o impossível

    bem no centro da cidade e um Dr. King que sobreviveu arranja

    sempre alguma Aretha e sua banda para entoar todo domingo

    um superlullaby para sem-tetos resignados transexuais

    indecisos negros injuriados e policiais sem desejo

    por entre brisas de xixi e os perfis dos altos edifícios

    *

    2.

    se a vida insiste em complicar
    tua existência
    dispensa que ela se explique

    *

    3.

    errada ou correta
    tonta ou refeita
    o fino ou animal
    a torto ou direita
    distante ou na meta
    absurda ou mais-que-concreta
    uma outra ou a tal
    com ou sem jeito
    rima ou destom
    bem ou caos -

    nada

    vale tudo

    o que não

    seja enfim

    conseguir

    arrancar

    o som do seu
    - sim

    JOÃO BANDEIRA é poeta e curador.

    JOÃO PINHEIRO, 34, é ilustrador, artista plástico e autor de histórias em quadrinhos, como "Burroughs" (Veneta).

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