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    Veio, entrou e passou

    RODRIGO SIQUEIRA

    25/10/2015 02h07

    São João da Chapada, 2007

    É muito comum ouvirmos alguém lamentar a falta de uma câmera que pudesse registrar um acontecimento importante, por inusitado ou fortuito, que se passara diante de si.

    Para um cineasta documentarista, não ter uma câmera rodando quando o imponderável dá as caras ao mundo é razão para que a falta do registro torne-se um registro em si mesmo, íntimo e inesquecível. Uma lembrança para a vida toda, mesmo que seja um vazio.

    Pierre Kerchove/Terra Deu Terra Come
    Seu Pedro com a máscara de João Batista, personagem inventado por ele para resgatar suas memórias
    Seu Pedro com a máscara de João Batista, personagem inventado por ele para resgatar suas memórias

    Em maio de 2007, rodava meu documentário "Terra Deu, Terra Come" em um vale escondido, próximo à comunidade quilombola Quartel do Indaiá, no distrito de São João da Chapada, localizada a 40 km de Diamantina (MG). O filme registrava os resquícios de memória da passagem africana pela região. No auge da extração de diamantes, no final do século 18, a área de São João da Chapada chegou a ter 30 mil escravos trabalhando nos garimpos da Companhia Real de Extração, da Coroa portuguesa.

    A maior parte dos africanos escravizados era falante de línguas de matriz banto, que, misturadas ao português, formaram o dialeto "banguela", talvez porque muitos eram do golfo de Benguela. Com o declínio do garimpo, sobrou pouca gente na região, e o dialeto ficou restrito aos vissungos, um tipo de cantiga que era usada sobretudo no trabalho coletivo ou durante os cortejos fúnebres.

    Aos poucos, o trabalho coletivo diminuiu a quase nada e a memória dos vissungos minguou. O filólogo Aires da Mata Machado Filho registrou, em pesquisa de 1943, letras e melodias de 63 vissungos de São João da Chapada, publicadas no livro "O Negro e o Garimpo em Minas Gerais" (Itatiaia/Edusp, 1985).

    Quando iniciei as filmagens havia apenas um cantador remanescente: Pedro de Alexina. Os vissungos são cantos de verso e resposta, entoados por no mínimo dois cantadores. Solitário, seu Pedro, não conseguia reter mais que seis ou sete cantigas e alguns fragmentos.

    Durante um mês, registramos uma infinidade de histórias sobre os "antigos", e preparamos a encenação de um velório e um cortejo fúnebre para atiçar a memória de seu Pedro e tentar resgatar vissungos aparentemente perdidos.

    A filmagem do ritual começou num fim de tarde, o sol se escondeu, as velas foram acesas em torno do "defunto", e o velório correu como se fosse real. Seu Pedro não só incorporou o papel de mestre da cerimônia fúnebre como aos poucos foi reagrupando fragmentos de sua memória madrugada adentro. Quando o sol começou a sair, Pedro juntou o grupo em volta da rede com o "morto" e deu início ao cortejo.

    A partir do momento em que pediu licença ao dono da casa para levar o finado, todos os passos foram marcados por vissungos. Já na saída entoou um pedido de licença para passar com o morto entre os dois morros com status de entidade africana: "Ê ê, Jamundá. É Jamundá e Macurendê, meu Deus, ê ê Jamundá".

    Nos primeiros cinco quilômetros percorridos pelo cortejo, Pedro cantou todos os vissungos que conhecia. Alguns trechos que eu ouvira anteriormente ganharam a companhia de outros e surpreendentemente formaram outras cantigas. Estávamos todos impactados porque ele recuperara memórias perdidas, e corríamos para acompanhar o cortejo. Não podíamos perder nada.

    Quando faltava pouco mais de um quilômetro para chegar à sepultura, paramos para respirar e tomar um gole de cachaça. O trecho final seria uma subida bastante íngreme. Seu Pedro serviu a todos com a garrafa que trazia na capanga e marcou uma cruz na árvore, como manda a tradição. Aproveitamos para trocar as baterias da câmera e do gravador de som. Nesse momento, o velho griô iniciou um vissungo de linda melodia que falava sobre a mítica figura da morte e o vazio deixado onde passava. Alguns versos terminavam com uma exaltação a Zambi, Deus nas línguas banto.

    Eu estava ofegante e entorpecido por tudo que acontecia ali, bufando, molhado de suor e cachaça. E feliz. Naquele momento, tive a certeza de que se tratava de um vissungo "novo", que não figurava nos registros que eu conhecia.

    Olhei para a equipe, as baterias estavam recarregadas e pedi a seu Pedro que cantasse outra vez para gravarmos. Lembro dos olhos dele, apertados, olhando para o céu e para mim, tentando lembrar-se. Demorou até que me respondesse: "Passou". Como assim passou?, eu insisti. "Ela veio, entrou e passou." Mas não pode cantar de novo? "Não", disse ele em tom definitivo. Os carregadores levantaram a rede com o defunto e ele pediu licença para subir o último morro.

    Convivi com o vazio do não registro desse vissungo sobre a morte durante os dois anos que passei editando o material. Quando o filme ficou pronto, iniciei o projeto do "Orestes", que está nos cinemas hoje, sem atinar muito para isso. Não por acaso, o filme lida com os buracos da memória, dos vazios da nossa história, e a morte é uma personagem importante.

    RODRIGO SIQUEIRA, 42, documentarista, fez "Orestes", em cartaz em São Paulo.

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