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    Lori sexagenária

    ELIANE ROBERT MORAES

    01/11/2015 03h15

    Toquei a campainha. Ela abriu a porta e, muito embora fosse nosso primeiro encontro, foi logo me chamando pelo apelido. Olhou firme e perguntou, na lata: "E então, Nani, qual é a sua? Você é casada, solteira ou amigada? É lésbica? Tem amante?". Respirei fundo antes de esboçar uma resposta, já pedindo socorro à garrafa de uísque plantada na mesinha de centro da sala que, ao longe, me acenava um convite para ficar mais relaxada.

    Fabio Braga - 25.set.2015/Folhapress
    Dedicatória de Hilda Hilst a Eliane Robert Moraes em edição de "Alcoólicas": "À caríssima Nani, o maior carinho e admiração da H.Hilst/90"; a autora aparece criança na contracapa de "O Caderno Rosa de Lori Lamby"
    Dedicatória de Hilda Hilst a Eliane Robert Moraes em edição de "Alcoólicas": "À caríssima Nani, o maior carinho e admiração"; na foto, a poeta aparece criança em "O Caderno Rosa de Lori Lamby"

    "Um pouco de tudo" –rebati sem muita convicção, mas satisfeita por ter encontrado uma fórmula minimamente à altura da anfitriã. Foi assim que conheci Hilda Hilst.

    Era o ano de 1990, e ela acabara de lançar "O Caderno Rosa de Lori Lamby", pela editora Massao Ohno. Semanas antes do encontro, eu havia sido consultada por Humberto Werneck sobre a possibilidade de escrever uma resenha para o caderno "Ideias" do "Jornal do Brasil". Na época, como conhecia pouco a literatura hilstiana, achei por bem declinar. "Mas é um livro cheio de obscenidades", insistiu, confiando que os principais críticos da autora, sob o impacto do escândalo, haviam se recusado a colaborar.

    Bastaram dois dias para eu me ver cativada por aquelas páginas que me apresentavam uma escritora extraordinária, cuja obra nunca mais deixei de ler –e reler.

    A resenha foi publicada em 12 de maio no suplemento dominical do jornal carioca, sob o título "A Obscena Senhora Hilst". No dia seguinte recebi um telefonema dela, agradecendo o texto e propondo o encontro para aquela mesma noite. Hilda já vivia há muito na Casa do Sol em Campinas e, quando vinha a São Paulo, se hospedava nos Jardins, com José Mora Fuentes e Olga Bilenky, amigos de toda vida.

    Foi, portanto, na porta desse apartamento, e diante do simpático casal, que dei de cara com a inesperada saudação da escritora, numa prosaica segunda-feira que ganhava ares de domingo.

    Três doses mais tarde, já conversávamos bem mais à vontade. O assunto era, claro, literatura. Falamos de Lori Lamby e de Georges Bataille, de Sade e de Kasantzákis, de morte e de erotismo, e dos obscuros pontos de encontro entre o sagrado e o profano.

    Ela me contou do projeto de escrever outros livros obscenos, não poupou críticas aos editores e detonou como pôde as alquimias de Paulo Coelho, as bicicletas de Régine Deforges e as demais bobagens dos best-sellers, desfilando todo um repertório que se tornou a marca registrada de suas entrevistas no período. Havia um quê de teatral na sua pessoa, que me convocava mais como espectadora do que como interlocutora. Sua fala expressava força, fúria e furor, para ficar apenas na letra "f", pois, a exemplo de sua literatura, Hilda Hilst era um abecedário completo. E em franca ebulição.

    Não sei bem que horas eram quando nos despedimos. Só me lembro de que a garrafa de uísque dentro do apartamento estava tão vazia quanto a rua lá fora. Coincidência ou não, saí de lá carregando uma primorosa edição de "Alcoólicas", volume de poesia publicado em 1989 pelas oficinas gráficas Raízes de Passa Quatro (MG), sob o patrocínio de uma vinícola. Achei uma graça imensa quando li isso no elevador. A dedicatória, porém, só vim a ler no outro dia, quando a ressaca passou.

    Curiosamente, inspirei-me no longo poema do livro para dar o título "Da Medida Estilhaçada" ao segundo texto que escrevi sobre Hilst, oito anos depois do encontro. Nos últimos versos do poema, o eu lírico convida a Vida a "buscar conhecimento na embriaguez" e dispara, em tom de desafio: "Beba./ Estilhaça a tua própria medida".

    Essa foi a primeira e última vez que estive com Hilda. Nunca mais a vi, mas fiquei feliz ao reconhecer minha resenha na orelha da segunda edição do "Caderno Rosa", bem ao lado da contracapa que estampava uma foto da autora na flor da infância, vestida de marinheira.

    Passado um quarto de século, ainda recordo aquela noite como uma exclusiva "soirée" de teatro e me pergunto se a pessoa que conheci era mesmo a escritora. Fico pensando se aquela senhora altiva, debochada e desbocada não era a própria Lori Lamby, na plenitude dos seus 60 anos.

    ELIANE ROBERT MORAES, 64, é professora de literatura brasileira na USP e autora de "Perversos, Amantes e Outros Trágicos" (Iluminuras).

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