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    crítica

    Novo livro policial de J.K. Rowling sob pseudônimo é apavorante

    VIV GROSKOP
    DO "FINANCIAL TIMES"

    06/11/2015 15h28

    O pontapé inicial (desculpe) de "Career of Evil" envolve uma mulher que tem uma perna amputada. A perna é entregue em um pacote a Robin Ellacott, uma jovem cordata e eficiente que acaba de se tornar assistente do detetive particular Cormoran Strike. Seria de imaginar que identificar quem diabos enviaria esse tipo de presente a alguém fosse tarefa difícil. Mas Strike consegue recordar imediatamente quatro nomes de seu passado que poderiam ser responsáveis –ou seja, há gente demais que lhe enviaria uma perna amputada como presente. O fato é que Strike atrai pessoas como essas.

    Bem-vindo à terceira parte da história de J.K. Rowling como escritora de mistério. A trama por trás da trama é muito boa, de qualquer jeito: uma escritora de sucesso que tenta se reinventar publicando sob pseudônimo, e termina identificada quase imediatamente. Publicado em 2013, "O Chamado do Cuco", de "Robert Galbraith, antigo investigador à paisana da polícia militar britânica que deixou o exército em 2003 para trabalhar no setor civil de segurança", parecia bem escrito demais para um romance de estreia, e vendeu 1,5 mil cópias. Mas o disfarce de Rowling foi revelado algumas semanas mais tarde e as vendas subiram em 4.000%.

    Dan Hallman - 16.out.2012/Invision/AP
    J.K. Rowling em retrato de 2012, em Nova York
    J.K. Rowling em retrato de 2012, em Nova York

    Passados dois anos, "O Chamado do Cuco" e "O Bicho-da-Seda" venderam mais de 1,5 milhão de cópias, e o personagem vai se tornar astro de uma série da BBC1. O que significa que há muito em jogo no terceiro livro. Será que "Robert" (a quem Rowling define como "amigo" no Twitter) acertará de novo? No entanto, pensando por outro lado, poderia existir menos pressão sobre um romancista? Os dois primeiros livros foram recebidos de maneira universalmente favorável. E não é como se a capacidade narrativa do "amigo Robert" estivesse sendo questionada.

    Por outro lado, os romances protagonizados por Cormoran Strike foram descritos como "macabros" até mesmo pelos fãs mais endurecidos de romances policiais. Uma resenha online de "O Bicho-da-Seda" se queixa de "referências excessivas à prótese de Strike" –ele perdeu uma perna quando em serviço militar no Afeganistão. (A prótese, removida para as cenas de sexo –felizmente infrequentes– é parte importante do personagem.) As pessoas avessas a próteses certamente não são a audiência procurada pelo livro, cujo tema é a acrotomofilia: "Uma parafilia na qual gratificação sexual é obtida de fantasias ou atos envolvendo uma pessoa que tenha sofrido amputação".

    Não estamos falando de "Encaixotando Helena" (filme sempre presente na programação da TV a cabo, estrelado por Sherilyn Fenn como mulher confinada a uma caixa por Julian Sands, cirurgião psicopata que amputa seus membros), já que é Robin, a assistente de Strike, que se torna alvo como maneira de atingi-lo. Há muito para causar repulsa aos fastidiosos, especialmente os trechos gelidamente explícitos que descrevem o mundo interior do assassino. Basta dizer que ele faz com que Voldemort pareça o Dalai Lama.

    A despeito de o livro ser inteiramente narrado em terceira pessoa, existe uma habilidosa sobreposição de perspectivas, e o assassino participa de diversas cenas (obviamente não identificado). Ele não é companhia muito agradável, vive com alguém a quem chama de "isso" (supostamente seu parceiro e vítima de seus abusos), e se delicia em ostentar astutos disfarces (chapéus, gorros e casacos vestidos do avesso), e em uma vasta coleção de facas e troféus carnais.

    Boa parte da história é narrada com Robin como foco, porém. Ela está ansiosa por encontrar seu espaço como investigadora particular, e deseja impressionar Strike, por quem ela é ligeira e imprudentemente apaixonada. E a atração é mútua, claro. Robin não tem medo de muita coisa –a despeito de uma situação muito assustadora em seu passado. Mas sofre de severa ansiedade sobre seu casamento iminente com o fracote Matthew. Já o homem que a persegue discorda. Em sua opinião, Robin não deveria se preocupar com o casamento, porque ele planeja não permitir que ela chegue viva ao dia.

    Se havia uma crítica comum aos dois romances de Strike anteriores, era a de que Galbraith (sim, vou entrar na brincadeira) privilegiava os personagens em detrimento da trama. A mesma coisa acontece no terceiro livro, mas neste caso parece ser uma virtude: o leitor se interessa tanto pelo relacionamento entre Strike e Robin quanto pelo crime. O livro exigiu muita dedicação. Rowling (está bem, desisti) afirma nos agradecimentos que "não me lembro de ter me divertido tanto escrevendo um romance quanto no caso de 'Career of Evil'". É uma afirmação que um escritor não faria levianamente. Ela já declarou em outras ocasiões que este livro exigiu mais planejamento do que qualquer outro de seus trabalhos, e que lhe causou pesadelos –"o que nunca havia acontecido". Eu também fiquei apavorada. E por isso o recomendo apenas aos fãs mais dedicados de livros de mistério: um livro com pernas, que você não consegue largar e que o manterá em pé a noite inteira (ops, desculpe).

    "Career of Evil", ed. Sphere.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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