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    Para urbanista francês, política deve enfrentar mercado

    FRANCESCA ANGIOLILLO

    15/11/2015 02h04

    Quando um político encampa um projeto a ponto de vendê-lo como se fosse ideia dele próprio, esse projeto ganha uma chance real de sair do papel. Tal constatação resume a visão pragmática que o arquiteto e urbanista francês David Mangin tem acerca dos problemas das grandes cidades no mundo –e de suas possíveis soluções.

    O tom estoico de sua fala é conveniente ao tipo de tarefa profissional a que Mangin se presta. Requer paciência lidar com as questões que ocupam o dia a dia desse professor, especialista em um dos vetores principais, senão o maior e mais complexo, do crescimento das cidades: a mobilidade.

    Atualmente ele é membro do Ateliê da Grande Paris, grupo de profissionais que desenha uma malha de transporte metroferroviário para integrar cidades da região metropolitana parisiense. O objetivo é desafogar a capital do país do fluxo de pessoas em trânsito para outras cidades do entorno. É como um enorme rodoanel para gente –e sobre trilhos.

    Dentro do projeto da Grande Paris, coube ao escritório que tem Mangin entre os sócios, o Seura, a remodelação do complexo de Les Halles, articulação fundamental de linhas de metrô e RER (trens urbanos), na qual se conjugam também um centro comercial e, na superfície, uma esplanada, no coração da capital francesa.

    Foi com essas credenciais que ele desembarcou em São Paulo para ministrar aulas e conferências, a convite da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, dentro do programa Cátedras Franco-Brasileiras no Estado de São Paulo.

    Chegou à cidade um pouco depois do primeiro aniversário do plano de ciclovias de Fernando Haddad e da implantação de limites de velocidade mais baixos e um pouco antes de a prefeitura decidir por fechar a av. Paulista para carros aos domingos.

    Mangin entende que o crescimento de megalópoles de países em desenvolvimento muito dificilmente se faz acompanhar pela estrutura de transporte coletivo adequada a sua escala. "Cidades com 15 milhões de habitantes, como Shenzhen ou São Paulo, chegaram a essa cifra em 30 anos, enquanto Paris chegou a 12 milhões de habitantes em dois séculos. É claro que isso é muito difícil de organizar, a não ser no caso de um Estado extremamente forte, como o chinês", diz. "Entramos num círculo vicioso, tentando recuperar 30 anos de atraso de transporte coletivo, enquanto a indústria do automóvel continua a se desenvolver e as pessoas a dizerem 'eu dependo do carro'."

    O urbanista destaca que há diversas formas de fazer frente a essa dependência –uma delas, diz, é agir, como a Prefeitura de São Paulo, sobre a gestão do espaço, com a criação de corredores de ônibus.

    "As pessoas reclamam, mas tudo é questão de oferecer uma alternativa na hora de tomar uma medida vista como coercitiva, sem ficar só na 'ecologia punitiva', como dizemos em francês." E agrega, em seu padrão imperturbável, que "é normal passar por momentos de grande impopularidade".

    Para ele, um bom exemplo de como mitigar o impacto de medidas "punitivas" vem da implantação dos corredores de ônibus em Paris pelo prefeito Bertrand Delanoë (2001-14). Mangin recorda que, no começo, as pessoas nos carros se irritavam ao ver os corredores com poucos ônibus. Mas, ao mesmo tempo que aumentou a frota, a prefeitura implantou o sistema de compartilhamento de bicicletas Vélib, que, no dizer do arquiteto, "mudou muito a imagem de sua política de mobilidade".

    Estimular o uso de veículos alternativos ("em Xangai desenvolveram umas motos elétricas formidáveis, são silenciosas, rápidas e ocupam pouco espaço") e limitar a oferta de estacionamento são outras formas de lidar com o peso do carro na equação viária.

    MINHOCÃO

    Por fim, há também a possibilidade de agir sobre a "temporalidade", com soluções "reversíveis" como São Paulo faz com o Minhocão. Mangin ouviu falar bastante do elevado e das discussões sobre seu futuro.

    "Esse se tornou um tema emblemático, sobre o qual todo mundo tem uma opinião. Não participei diretamente dos debates, mas me pareceram meio irracionais. Para ser racional, é preciso perguntar que consequência sua eliminação teria sobre o tráfego. Dá para dispensá-lo? O que se poderia oferecer se ele for demolido, ou se seu uso for mais restrito? Se não há debate sobre um projeto alternativo de transporte, acho a solução atual bastante interessante", pondera.

    Ele entende, porém, que, nessa questão entra o "jogo simbólico de reapropriação do espaço público". Mas ressalta ter visto, em São Paulo, exemplos felizes de espaços apropriados pela população, como as "extraordinárias" unidades do Sesc e a marquise do Ibirapuera.

    "É uma verdadeira invenção essa de um lugar gratuito ligando os edifícios, que às vezes pode estar completamente vazio, permitindo apreciar a beleza e a grandeza do espaço, e às vezes cheio de gente. Em outras cidades do Brasil vi lugares assim também –em vez de praças de 'dedicação exclusiva', à europeia, com cafés, bancos, espaços pra skate para os adolescentes, espaços de grandes dimensões, que fabricam lugares de encontro e que permitem a pessoas da periferia continuar a participar da identidade geral da cidade. Senão, sobra a segregação."

    Autor de "La Ville Franchisée" (2004), um livro que compara a forma atual de expansão urbana às franquias, com a reprodução global de variantes de um mesmo modelo de cidade, voltado para o automóvel, erigido em torno de bolsões de residências em sua maioria unifamiliares, Mangin analisa criticamente a inação política que permite esse tipo de processo.

    "Se um prefeito aceita esse urbanismo que produz condomínios, shopping centers e áreas empresariais fechadas é porque pensa que são espaços públicos a menos para gerir, menos projetos a discutir, menos risco eleitoral –'o grupo financeiro é que vai cuidar disso, eu só arrecado os impostos'."

    Ele ressalta que cabe à política criar espaços agregadores, que combatam as imposições dos mercados com persistência e clareza.

    "Você desenvolve uma ideia clara, com bom senso, e aí alguém vem dizer que 'as pessoas não querem isso'. O mercado não quer isso. 'Temos nosso produto, temos de fazer a moradia sobre grandes estacionamentos', dizem. Não é isso que 'as pessoas' querem. Até que um prefeito impõe que em tal bairro, se quiser, tem de ser assim. Um, dois, três recusam; o quarto aceita, os outros veem os resultados e querem a mesma coisa."

    Mangin diz crer na convergência entre vontade política e conjuntura econômica. "As pessoas mudam de ideia, o modelo econômico se desgasta, e é preciso achar outra rentabilidade. É assim que as coisas se movem. Não devemos ser pessimistas demais."

    FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da "Ilustríssima".

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