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    Política do um filho por casal mudou a China para sempre com sua crueldade

    ISABEL HILTON
    DO "GUARDIAN"

    14/11/2015 13h00

    Os casais casados da China agora estão graciosamente autorizados pelo Partido Comunista a terem dois filhos. É um ajuste de políticas nascido da ansiedade quanto ao impacto que distorções demográficas poderão causar na economia, e do medo de que a força de trabalho em contração e o número crescente de aposentados condenem a China a envelhecer antes de enriquecer.

    Mas depois de 35 anos de abortos forçados, infanticídio de meninas, nascimentos sem registro e indivíduos traumatizados, o partido talvez venha a descobrir que diminuir as famílias chinesas foi mais fácil do que aumentá-las será. A esta altura, será preciso mais que permissão oficial para mudar de maneira significativa os índices de natalidade da China.

    Em 1969, depois de 20 anos de desordem maoista, a China era uma sociedade agrária empobrecida com um índice de natalidade típico de seis crianças por mulher. Na época, filhos eram vistos como uma vantagem, porque ofereciam mãos adicionais para a lavoura e mais proteção contra uma velhice de fome. Havia pouca mobilidade geográfica ou social, e diversas gerações de familiares continuavam a viver juntas, com os avós cuidando dos netos enquanto as mães trabalhavam no campo. Ter uma família grande era encorajado pelas autoridades: Mao Tsé-tung considerava Thomas Malthus um pensador capitalista, e acreditava que o socialismo teria sucesso como provedor. Ele costumava se vangloriar de que a China podia arcar com a perda de 100 milhões de pessoas e ainda assim sair vencedora da guerra nuclear que via como inevitável contra a União Soviética.

    Quando chegou 1979, Mao estava morto e Deng Xiaoping tinha posição diferente. A China só prosperaria, ele acreditava, se a expansão da população não consumisse os lucros gerados pela expansão econômica. Os direitos reprodutivos dos cidadãos chineses foram abolidos; eles não só precisavam solicitar licença para ter filhos como qualquer violação poderia resultar em aborto forçado ou uma grande multa.

    Depois de mais de 30 anos da política de um filho por casal, aplicada em alguns casos com grande brutalidade, a sociedade chinesa foi mudada para sempre. A queda no número de trabalhadores e a alta no número de aposentados vem colocando em foco com cada vez mais urgência uma ansiedade persistente: será que a China envelhecerá antes de enriquecer? Um país que não recebe bem a imigração terá de enfrentar um problema demográfico em longo prazo.

    Mas a China esperou demais para abolir uma regra que as mudanças econômicas e sociais há muito tornaram obsoleta. O novo decreto –que permite dois filhos a cada casal casado– representa apenas um pequeno ajuste depois do relaxamento da norma vigente, em 2013, para permitir dois filhos por casal caso um dos cônjuges fosse filho único. É notável que poucos casais tenham decidido aproveitar a oportunidade, e os motivos para a recusa não são difíceis de identificar.

    A China hoje é uma sociedade majoritariamente urbana, e as mães que no passado trabalhavam na lavoura agora têm longas jornadas de trabalho em fábricas. A maioria vive a centenas ou milhares de quilômetros de suas aldeias, dos pais que poderiam apoiá-las e, se os têm, de seus filhos. Como migrantes, não têm direito de matricular seus filhos em escolas urbanas, e não contam com alguém que tome conta das crianças enquanto trabalham. Há poucas folgas para os pais e a assistência oferecida pelo Estado é modesta; a habitação é muito cara e uma educação decente custa dinheiro. A China deixou de ser uma nação na qual sobrevivência e status dependiam de família e clã e passou a ser um país no qual a maioria das crianças não tem irmãos, primos, tios ou tias.

    Outra ironia é que a China, apesar de toda a sua miséria e crueldade, atingiu índice de natalidade que não é inferior ao de seus vizinhos asiáticos –Taiwan, Hong Kong e Coreia do Sul–, e os vizinhos citados chegaram a esses números sem coerção. Em Taiwan, por exemplo, o índice de natalidade caiu a 1,8 filho por mulher no final dos anos 80 e a 0,9 em 2010. As mulheres urbanas com bom nível educacional e dotadas de liberdade de escolha tendem, como sabemos, a formar famílias pequenas. Hoje, Taiwan paga incentivos em dinheiro às mães para encorajar famílias maiores.

    O legado da brutal aplicação dessa política na China é, ainda assim, profundo: existe desequilíbrio entre os sexos no país, e isso pode impedir que 19 milhões de homens jovens encontrem cônjuges. As finanças precárias dos governos locais resultaram na imposição de bilhões em multas para os casais que tenham filhos sem aprovação do partido, e é improvável que os governantes desejem abdicar dessa fonte de receita. As pessoas que não tinham como pagar multas encontraram outras maneiras: em casos extremos, recorreram ao infanticídio; outros casais abandonaram crianças indesejadas, ou as enviaram para parentes. Um resultado é que existe número desconhecido de cidadãos sem documentos, e crianças impedidas de receber educação e serviços de saúde. Será que o governo realmente abandonará sua interferência na vida de família e decretará anistia para as vítimas de uma política prepotente e cruel?

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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