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    As muitas palavras bem escolhidas de Lillian Ross

    PENELOPE GREEN
    DO "NEW YORK TIMES"

    17/11/2015 13h00

    James Thurber a apelidou de "a garota com o gravador embutido", graças a seu ouvido incomum para diálogos. Para John Huston, ela era "kid" (menina), e Ernest Hemingway a chamava simplesmente de "daughter" (filha). Jovem repórter obstinada, com rosto delicado e cabelos cacheados escuros, Lillian Ross começou a trabalhar na "New Yorker" em 1945, acolhida no vácuo deixado pelos repórteres e editores homens que tinham ido fazer serviço militar na Segunda Guerra Mundial –embora recebesse muito menos que eles. Na metade do século ela já estava fazendo história jornalística, inaugurando o tipo de reportagem-ensaio que iria inspirar trabalhos posteriores como "A Sangue Frio", de Truman Capote.

    Lendo hoje "Come in, Lassie", sua descrição desinibida de uma Hollywood assediada pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, não podemos deixar de desejar que Ross estivesse cobrindo a campanha presidencial de 2016. (Jack L. Warner, presidente da Warner Brothers, em uma passagem de "Lassie:" " 'Não se preocupem!', ele brada, dando tapas nas costas dos homens menos ousados à sua volta. 'O Congresso não vai poder durar para sempre!'.")

    Silvia Reinhardt
    A jornalista Lillian Ross acompanha filmagens de "A Glória de um Covarde" (1951), do diretor John Huston
    A jornalista Lillian Ross acompanha filmagens de "A Glória de um Covarde" (1951), do diretor John Huston

    O dom especial de Lillian Ross era de encantar seus entrevistados, induzindo-os a revelar sua verdade mais natural, mais próxima ao id, como Hemingway fez de modo memorável durante um passeio de três dias por Nova York com Ross ao seu lado. No artigo resultante, uma obra fascinante e hilária de jornalismo descritivo, Ross captou, entre outras particularidades do escritor, a "fala indígena" de Hemingway, idiossincrática e sem artigos: "Livro é como motor", Hemingway lhe disse. "Temos que desligar aos poucos." Com aquela reportagem, intitulada "How Do You Like it Now, Gentleman?", Ross praticamente inventou o moderno perfil de entretenimento. O texto também lhe valeria acusações de paródia mal-intencionada, apesar de Hemingway tê-lo lido antes de ele ser publicado e ter adorado.

    Ross é famosa também por seu relacionamento de 40 anos com o legendário editor da "New Yorker", William Shawn. Ela foi a chamada "esposa nas sombras", que infringiu as regras quando publicou um livro de memórias detalhando a vida que eles viveram juntos –"Here but Not Here", de 1998, quando a esposa oficial de Shawn, com quem ele tinha três filhos, ainda estava viva.

    Durante toda sua longa carreira, Ross foi tanto elogiada quanto criticada por sua garra e sua capacidade de sobreviver; por ser, como disse recentemente um editor da "New Yorker", uma jornalista muito ambiciosa do sexo errado.

    "Fui incentivada a ser eu mesma", Ross comentou outro dia. "Tive muita sorte." Às 16h de uma terça-feira recente, Lillian Ross e Susan Morrison, editora de artigos da "New Yorker", receberam uma repórter no apartamento da rua East 85th onde Ross vive desde 1958. Com 97 anos hoje, ela usava agasalho cinza e brincos pequenos de ouro, ostentando ainda os cachinhos e o sorriso travesso que são sua marca registrada. Com a ajuda de Morrison, Ross reuniu muitos de seus textos mais marcantes, incluindo o perfil de Hemingway, juntamente com outros textos mais recentes, em um livro que abrange 60 anos de jornalismo, "Reporting Always: Writings from The New Yorker", lançado esta semana pela Scribner.

    O apartamento modesto ainda é decorado com os móveis de meados do século escolhidos por Shawn muitos anos atrás: uma escrivaninha Eames, uma cadeira de balanço dinamarquesa moderna, quatro cadeiras italianas em volta de uma pequena mesa redonda de laminado branco. "É tudo o gosto de Bill", disse Ross. "Ele era um homem maravilhoso. Foi o amor de minha vida. As pessoas não gostam quando digo isso."

    Enquanto seus colegas talvez a invejassem pelo acesso que tinha a William Shawn e fossem profundamente contra a ideia de ela expô-lo em seu livro de memórias, está claro que Ross sofreu tremendamente pelo relacionamento e pagou por ele com a coisa que ela amava mais, seu trabalho. "Quanto mais eu mergulhava em nossa vida juntos", ela escreveu em "Here but Not Here" –obra que causa incômodo ainda hoje, 17 anos depois de ser lançada–, "menos eu escrevia. ... Eu não tinha a mesma energia de antes para o trabalho."

    Em 1987, quando Shawn foi demitido, depois de mais de meio século na "New Yorker" e dois anos depois de a revista ter sido comprada pela Condé Nast, Ross deixou a revista com ele e juntou-se a Shawn no exílio na rua 85th. (Shawn foi sucedido por Robert Gottlieb, que tinha sido editor na Knopf.)

    Fato interessante, foi outra jornalista jovem que tinha se apaixonado por seu chefe muito mais velho e casado quem devolveria o emprego a Ross –Tina Brown, antes repórter do jornal britânico "Sunday Times", sob a direção do editor Harold Evans. Quando Brown herdou a "New Yorker", uma comunidade traumatizada cujos integrantes tinham minguado muito depois da debandada promovida na era de Gottlieb, em 1992 (por acaso o ano em que William Shawn morreu), ela telefonou a Lillian Ross, então na casa dos 70 anos. Ross recomeçou a escrever matérias e perfis para a seção "Talk of the Town", com todo seu entusiasmo anterior.

    "O que eu mais me lembro é que ela era surpreendentemente descolada", comentou Brown na semana passada. "Vivia propondo pautas sobre filmes ou peças de teatro novos. De alguma maneira ela ainda era aquela 'repórter garota', só que com uma auréola de cabelos brancos, me propondo uma reportagem sobre o novo filme de Robin Williams, como se fosse a jornalista nova e descolada da seção de entretenimento."

    E Ross estava ansiosa por fazer parte da nova redação, embora tivesse algumas reservas. Katrina Heron, que foi editora sênior da "New Yorker" em certa época, recordou uma reunião no café da manhã no Royalton no início dos anos 1990 com Brown, Ross e alguns editores e redatores jovens que estavam se exibindo um pouco para Brown. Heron contou que a conversa era sobre Wallace Stevens e Ross citou um trecho de um poema de Stevens, um trecho belo e longo. Depois de um ou dois versos, "um dos redatores mais jovens repetiu o poema de volta. Mas ele errou algumas palavras. E Lillian falou 'não, você se enganou'. Ela repetiu o poema novamente. Estava exigindo clareza. Ela conhecia aquela passagem muito bem, e era importante para ela que fosse recitada corretamente."

    Foi Tina Brown quem arrancou de Ross a história de seu relacionamento com Shawn, se bem que, no final, ela não tenha sido publicada na "New Yorker", por respeito pelo editor, disse Brown. "Eu me senti muito atraída por Lillian", ela comentou. "Era a repórter jovem e icônica que tinha se apaixonado pelo editor. Eu tinha feito a mesma coisa. Tínhamos isso em comum."

    E Ross disse na semana passada: "Todas as pessoas tradicionais da 'New Yorker' ficaram horrorizadas. E eu virei a inimiga, porque gostava de Tina."

    Brown prosseguiu: "Como editora, achei a história dela absolutamente notável. E, à medida que o relato foi surgindo, que eu o fui arrancando dela, que nós duas conversávamos sobre isso, é claro que eu tinha uma vontade enorme de publicá-lo. Mas havia na redação um sentimento tremendo de hostilidade a essa ideia. Eu estava numa agonia tão grande que fiz algo que nunca faço, ou seja, perguntar a Si" (S.I. Newhouse Jr., ex-presidente da Condé Nast) "o que ele achava. Ele me disse: 'Algumas decisões são difíceis demais de tomar. Esta é uma delas.' No final, acho que a decisão foi provavelmente a correta, se bem que eu lamente não ter sido quem publicou."

    Quase duas décadas mais tarde surgiu uma nova geração de articulistas da "New Yorker" que em grande medida não foi marcada pelos escândalos familiares do século passado. (Em 2000 Dinitia Smith, em uma resenha do "New York Times" sobre toda uma leva de memórias da "New Yorker"ou, observou com ironia: "Para algumas pessoas, ler sobre os velhos tempos na 'New Yorker' é como ouvir a descrição entediante de um amigo sobre como sua passagem de avião recebeu um upgrade ou ouvi-lo contar o sonho que ele teve na noite anterior".) Muitos desses articulistas mais jovens puderam beneficiar-se do incentivo de Lillian Ross sem precisar decompor sua linhagem ou ser assombrados por fantasmas familiares.

    Lizzie Widdicombe, hoje redatora de 32 anos, contou que quando tinha 20 e poucos e era assistente, "fiquei em choque ao receber e-mails de Lillian quando publiquei uma matéria na 'Talk'. Eu tinha a impressão que ela me estava observando. Como assistente, é comum a gente se sentir mais ou menos invisível, então o fato de ter essa pessoa torcendo por mim era incrível." Elogiando um texto sobre Taylor Swift, Ross escreveu: "É incrível, tipo cada toque é incrível".

    Ross sempre teve um ouvido sintonizado com os jovens. Um texto dela de 1995 captou estudantes secundaristas de uma escola particular na cantina deles, a Jackson Hole, na rua East 91st, numa sinfonia de "upspeak" (uma forma de falar inglês típica de jovens), "onion rings" (anéis de cebola empanada) e Marlboro Lights.

    Nick Paumgarten, que trabalha na "New Yorker" desde 2000, recorda que quando seu primeiro filho nasceu, em 2001, Lillian Ross foi uma das primeiras pessoas que veio conhecê-lo. "Gosto de pessoas bem novinhas!", ela lhe disse. Lembrando o artigo dela sobre a Jackson Hole, ele acrescentou: "Ela realmente captava o som das pessoas falando. Era uma senhora mais velha nos mostrando como falam os jovens. Ela captou a vitalidade. Acho que ela também gostava de nós bem novinhos."

    Susan Morrison é editora de Ross desde o final dos anos 1990 e usa o trabalho de Ross para ensinar jornalistas mais jovens. Ela viu os escritos de Ross pela primeira vez em 1987, numa loja Ikea em Filadélfia, onde, curiosamente, vários exemplares de "Reporting", coletânea lançada em 1964, tinham sido dispostos sobre uma prateleira por um vitrinista da loja. Morrison roubou um exemplar.

    "Ela era a jornalista mais velha e também a mais cheia de energia que eu tinha à minha disposição", contou a editora. "Ela me telefonava às 16h e dizia: 'Acabo de saber de Carol Matthau que tem isso ou aquilo acontecendo. Pode ser interessante.' Então me ligava de novo às 22h e falava: 'Estou com uma matéria ótima.' Quando eu chegava ao trabalho no dia seguinte, ela já tinha mandado a matéria. Quando eu telefonava para lhe dizer que era ótima, ela estava na academia com seu personal trainer, depois de ter passado a noite escrevendo."

    O último texto de Lillian Ross para a seção "Talk of the Town" da revista foi publicado no início de 2011. Era um artigo sobre seu velho amigo Robin Williams, que estava em Nova York trabalhando em "Bengal Tiger at the Baghdad Zoo", uma peça sobre o Iraque.

    Em 2001 Ross editou "The Fun of It", uma coletânea de matérias Talk, como são conhecidas internamente na revista, e Rebecca Mead, redatora desde 1997, foi encarregada de entrevistá-la para a Biblioteca Pública de Nova York. "Citei alguma coisa que ela disse no prefácio do livro", contou Mead, "sobre o prazer que ela tem em escrever, que é como fazer sexo. Ela me deu um sorriso malicioso e falou: 'Isso mesmo, é verdade. E dura mais.'"

    Na semana passada um repórter perguntou a Ross sobre seu primeiro artigo, que ela escreveu quando estava no ginásio, sobre a nova biblioteca de sua escola. (A primeira linha do texto consta do prefácio de Ross a "Reporting Always": "Livros grossos, livros finos, livros novos, livros velhos...")
    Ross disse que não se recorda de ter recebido o crédito pelo texto, nem se lembra de muito mais sobre ele, mas se lembra do prazer que sentiu ao vê-lo impresso. "As palavras não tinham nada de especial, mas eram minhas."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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