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    Para biógrafa, Roland Barthes mudou formas do saber

    FERNANDO EICHENBERG

    22/11/2015 02h02

    Ela não conheceu seu personagem, mas adquiriu com ele uma intimidade incomum. Tiphaine Samoyault, 47, é autora de "Roland Barthes" [Seuil, 715 págs., R$ 168,10 sob encomenda na Livraria Cultura], biografia do pensador que, lançada neste ano na França, já se tornou uma referência. Para essa professora universitária, crítica e romancista, Barthes foi um inovador no aprendizado da literatura e na transmissão do saber e um precursor na antecipação de outro tipo de engajamento político e da leitura de novas tecnologias no mundo multimídia contemporâneo.

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    Roland Barthes em uma praia durante sua juventude
    Roland Barthes em uma praia durante sua juventude

    Folha - Duas gerações a separam de Barthes, mas você diz senti-lo como um contemporâneo. Michel Foucault disse dele que era "um grande precursor". Por quê?

    Tiphaine Samoyault - Um dos elementos mais evidentes é em relação ao ensino e à transmissão do saber. Junto com outros, penso que Barthes modificou profundamente o ensino da literatura. É algo que se ampliou mundialmente, mas que foi decisivo. Mesmo que não nos demos conta, nossa maneira de ler herda uma força que ele dá ao leitor e que é absolutamente determinante. Ele marcou muito também Umberto Eco neste aspecto -cita-se sempre "Obra Aberta" (1962) ou "Lector in Fabula" (1979), mas tudo vem de Barthes. Eco, aliás, o via como mestre.

    Há também o fato de que ele era politicamente muito lúcido. Elementos que lhe são criticados, como falta de engajamento em certos momentos, estão na verdade ligados à morte da esperança revolucionária, que ele compreende muito cedo -logo depois da Segunda Guerra, o que vejo como surpreendente-, e também à virada da sociedade do espetáculo.

    Nos anos 1970, quando ele retoma as novas mitologias na revista "Le Nouvel Observateur", há um texto que considero marcante. Ele encerra essa série de crônicas num dado momento dizendo que, uma vez que não se pode mais ter a esperança de mudar politicamente o mundo, nossa única maneira de falar de fenômenos, de imagens, das ideologias, é em termos morais. Para mim, ele anuncia algo que verificamos hoje. Sobretudo, ele foi precursor nas formas que daríamos ao saber e à linguagem do saber. Ele compreende que, se não podemos mais acomodar formas clássicas de modernidade, devemos mudar sua linguagem e a maneira de transmitir o saber.

    Você diz que a inventividade da forma de seus textos é uma reserva para pensarmos nosso mundo multimídia e de novas tecnologias.
    É a maior revelação para mim. Ele dá uma forma muito especial aos seus livros a partir dos anos 1970, com "S/Z", "O Prazer do Texto", quando é intelectualmente e socialmente autônomo. Sai da prática do discurso contínuo e encerrado, de forma totalizante, em um volume. Ele pensa a cartografia, a arborescência, as redes, oferecendo, com as possibilidades que lhe permite a edição, formas maleáveis, que são sobretudo combinações, em vez de discursos contínuos. Exatamente os gestos que somos obrigados a praticar hoje com a internet. Sua obra nos leva a refletir sobre esse novo gesto de disposição e de transmissão do saber para o qual ainda buscamos nossos caminhos, como leitores, como praticantes dos instrumentos digitais, como professores, pais... E ver que, em sua obra, antes até da generalização do computador, já estão inscritos todos esses gestos é algo extraordinário.

    Hoje ele usaria Twitter, Instagram?
    Acho que escreveria mitologias sobre isso (risos).

    No livro, você aponta as lacunas e carências da vida de Barthes: a morte do pai aos 33 anos na Primeira Guerra Mundial, em 1916; o tempo passado no sanatório por causa da tuberculose; sua homossexualidade dissimulada para a mãe ou sua escrita fragmentária.
    Eu falo disso para tentar entender por que houve uma atração manifesta pela vida de Barthes. Não é, a priori, uma vida aventureira ou apaixonante. Mas me disse que essas lacunas eram o que criava o desejo no leitor. Em geral, quem se interessa por Barthes gosta de ler ou de escrever. Tudo isso suscita o desejo. Essas lacunas são determinantes para fundar essa espécie de neutro. São espaços vazios ou ocos, deixam vago algo que muitas vezes ordena a carreira e a vida de alguém.

    Em Barthes, não há construção de família, ele não tem filhos. Não há construção de sistema, a semiologia é uma fórmula criada "ad hoc" para declarar um gosto pelas imagens e pelos signos. Ele não tem discípulos, à exceção de Umberto Eco. Ele também não teve mestres. Não teve uma carreira universitária. Tudo ocorreu ao acaso, ou mesmo de forma milagrosa. Sua obra não é algo sólido. Muitos dirão que ela é fruto de diletantismo, de amadorismo.

    Nesse quadro, "Fragmentos de um Discurso Amoroso" foi um de seus maiores sucessos. Por quê?
    Para mim, porque conta uma experiência comum, que atinge leitores de vários níveis diferentes, atinge todo mundo. Acho incrível essa forma de poder produzir ao mesmo tempo um discurso sábio, crítico e comum, que eu chamaria de romanesco, ao criar um elo afetivo de identificação com o leitor. Reunir essas três coisas é extremamente raro. Não sei quem mais fez isso. Há escritas suas que estão na confluência da análise e da ficção, são reflexivas, mas que, ao mesmo tempo, não têm medo da experiência e do afeto. Penso que, desse ponto de vista, ele marcou a literatura francesa.

    E sua influência no Brasil?
    Encontrei pessoas que ele conheceu, principalmente Leyla Perrone-Moisés. Muitos brasileiros foram alunos de seu seminário. Uma estudante me contou que, no dia da morte de Barthes, um jornal brasileiro titulou: "Barthes morreu sem ter escrito um romance". É surpreendente. Mostra até que ponto ele é também mitológico nesse país. Quem escreveu isso deve ter seguido seu seminário, ao menos aquele sobre a preparação do romance.

    O romance que ficou no projeto, "Vita Nova", teria sido realizado se não houvesse o acidente?
    Penso que ele o teria feito. Não teria a forma de um romance tradicional, hoje não seria considerado como um "romance". Mas, em seus dois últimos anos de vida, havia nele uma precipitação e uma necessidade de produzir essa obra. Temos coisas que foram publicadas de forma póstuma e que se inscreviam no projeto geral de "Vita Nova", como "Noites de Paris" (1987), "Diário de Luto" (2009). Talvez um dia se vá recompor isso de outra forma, e se conseguirá ver mais claramente.

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