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    A globalização da crise ambiental põe em xeque o capitalismo?

    MARCELO LEITE

    29/11/2015 02h05

    RESUMO O historiador Luiz Marques e a filósofa Isabelle Stengers seguem a trilha de Naomi Klein e predizem derrocada do capitalismo pela mudança climática e pelo caos ambiental planetário. Seus livros alimentam o ceticismo quanto à Conferência de Paris, que começa na segunda, mas não demonstram uma catástrofe inevitável.

    Fabio Braga/Folhapress
    Lama da mineradora Samarco em Mariana (MG) se espalha pela foz do rio Doce na praia de Regência em Linhares (ES)
    Lama da mineradora Samarco em Mariana (MG) se espalha pela foz do rio Doce na praia de Regência em Linhares (ES)

    O ano era 1977 ou 1978. Fausto Castilho (1929-2015) dava uma aula na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) quando um pássaro entrou pela janela e pousou em sua cabeça. A intrusão repentina da natureza marcou para sempre os que o ouviam naquela manhã.

    Castilho dizia então que a filosofia sempre se ocupara das relações problemáticas entre sujeito e objeto. Dali em diante, ponderou, teria também de se preocupar com o dejeto, vale dizer, com os subprodutos dessa interação.

    A ave, educada, deixou a sala sem mais alarde.

    Muitos ali escutaram provavelmente pela primeira vez que a temática da poluição tinha potencial filosófico, se não revolucionário. Desde então, os partidos verdes se institucionalizaram, e a questão ambiental entrou pela porta da frente nas corporações e nos governos (não tanto no Brasil, onde uma hecatombe como a de Mariana vai tratada como corriqueira).

    Há uma corrente de pensamento, porém, que busca resgatar o potencial de ruptura entrevisto há quatro décadas, após a publicação de "Primavera Silenciosa" por Rachel Carson em 1962. Ajudados pelo acontecimento planetário do aquecimento global, autores como a belga Isabelle Stengers e o brasileiro Luiz Marques se arriscam na trilha da americana Naomi Klein para vaticinar que ele incinerará as bases do regime capitalista.

    Cada um a seu modo, produziram dois livros impressionantes.

    TOLICES

    Stengers se destaca pela originalidade filosófica de "No Tempo das Catástrofes" [Cosac Naify, 157 págs., R$ 34,90], que beira o exótico. Entre outras formulações desconcertantes, ela alça a tolice à condição de conceito interpretativo político:

    "Em nosso mundo dito moderno, uma vez que o herói se torna destruidor das ilusões que atravancaram o processo de emancipação da humanidade, o gênero épico pode ter como consequência o poder dado ao que chamarei de tolice."

    Para a pensadora belga, esse mal acomete tanto governantes quanto cientistas quando desqualificam os questionadores da tecnociência como inimigos da razão e obscurantistas. Seu exemplo mais caro é o da resistência, na Europa, aos organismos geneticamente modificados (OGMs), ou transgênicos.

    A recusa desses produtos por parte do público, argumenta, não se funda na ignorância, mas num cálculo mais racional que o dos cientistas guiados apenas pelos imperativos da própria carreira. Só os consumidores conseguem enxergar mais à frente e divisar os riscos sistêmicos que a intensificação da agricultura com os OGMs acarreta, como o surgimento de pragas resistentes e a perda de autonomia dos produtores com a dependência crescente de tecnologias patenteadas.

    Stengers considera que, se nada for feito, a marcha insensata do crescimento de base tecnológica garantidor da reprodução do capital conduzirá à barbárie. Mas ela descarta tanto a miragem do socialismo quanto a alucinação de uma volta ao passado pré-científico.

    LIMITES

    Não há receita para a ação nem objetivo predeterminado por alcançar, ao estilo de Marx: "Deve haver luta, mas ela não tem, não pode ter mais, por definição, o advento de uma humanidade enfim liberada de qualquer transcendência. Teremos sempre que contar com Gaia, que aprender, à maneira dos povos antigos, a não ofendê-la" (itálico no original).

    Stengers, é bom que se diga, não subscreve inteiramente a versão forte e popular da metáfora construída por James Lovelock, que invoca o nome da divindade grega para caracterizar o planeta Terra como um organismo vivo.

    Para a autora belga, Gaia é a imagem dos limites –da finitude– que os recursos naturais impõem à obsessão com uma expansão contínua da produção e do consumo. A humanidade precisará reagir à sua intrusão, que interrompe a ladainha de que não há alternativa ao capitalismo, mas tal reação não tem ainda forma nem conteúdo definidos.

    AMBIÇÕES

    Marques sobressai, de seu lado, pelo porte da empreitada que resultou em "Capitalismo e Colapso Ambiental" [Editora da Unicamp, 642 págs., R$ 80]. Não é usual que um historiador dedicado à tradição clássica saia do seu caminho para encetar uma reconstrução ambiciosa da trajetória, iniciada com ela, que levou ao beco sem saída ambiental (segundo sua interpretação) do capitalismo.

    Ambiciosa demais, talvez. As 400 páginas e 11 capítulos da parte um ("A convergência das crises ambientais") poderão ser sobrevoadas a jato por quem tem alguma familiaridade com as crises ambientais no Brasil e no mundo. Elas pretendem compor, no entanto, a demonstração da tese anticapitalista adiantada nas 42 páginas da introdução e nas 98 da parte dois ("Três ilusões concêntricas").

    A tese central do livro: "O capitalismo é insustentável em termos ambientais e a esperança de torná-lo sustentável pode ser considerada como a mais extraviadora ilusão do pensamento político, social e econômico contemporâneo".

    ILUSÕES

    De uma tacada, Marques declara a inocuidade da árdua aproximação que se observa hoje entre ambientalistas e empresariado. E, implicitamente, indica que será inútil a Conferência de Paris sobre mudança do clima, que se inicia nesta segunda-feira (30). Paris e todas as 20 conferências que a precederam jamais tocaram ou tocarão no cerne de outras duas ilusões ligadas à tese central:

    (1) A crença, enraizada na cultura de matriz europeia, segundo a qual "quanto mais excedente material e energético formos capazes de produzir, mais segura será nossa existência como espécie em face da escassez e das adversidades da natureza";

    (2) "A ilusão antropocêntrica, de cunho metafísico e religioso, [...] de que a biosfera dispõe-se para o homem tal como um meio se dispõe a seu fim e de que o direito de reduzi-la a um dispositivo energético voltado para o proveito humano radicaria na singularidade de nossa espécie ou numa descontinuidade radical entre ela e a teia da vida".

    A atualidade, a extensão e a erudição das indicações compiladas por Marques exigem que seu livro seja lido com respeito e proveito por qualquer um. A questão é se elas fornecem uma demonstração, como quer o autor, de que o modo de produção capitalista já esbarra em seus limites e será em breve substituído.

    Pelo quê? Nem Stengers nem Marques, ciosos do fiasco do socialismo real, tomam a via escorregadia de uma filosofia da história, que ao mesmo tempo indique e prescreva seu "télos", a finalidade necessária. De todo modo, ambos parecem optar por uma espécie de teleologia de baixo teor: é inevitável, por obra de Gaia, que o capitalismo se esboroe, ainda que não se saiba o que virá depois.

    INDÍCIOS

    Eles podem até estar certos, claro. Não faltam indícios, a começar pelo aquecimento global, de que a expansão do consumo de energia de origem fóssil não pode continuar no ritmo e na escala atuais. Daí a demonstrar que o sistema capitalista não será capaz de operar a imprescindível descarbonização da economia, porém, vai certa distância.

    Não é inconcebível que empresas e governos capitalistas logrem substituir o carvão, o petróleo e o gás natural por fontes renováveis como a eólica, a solar e hidráulica. Esse processo já começou, ainda que lento em demasia.

    Todas as três fontes alternativas, em última instância, derivam da luz que emana do Sol. E este, para todos os efeitos da ínfima escala humana –temporal e material– pode ser considerado na prática um recurso infinito, tamanha é a quantidade de energia que dispensa sobre a Terra.

    De maneira talvez irresponsavelmente otimista, pode-se imaginar que essa substituição se componha com a estabilização populacional e com uma crescente produção de matérias-primas não minerais, recicláveis, obtidas por síntese biológica. Assim se engendraria um crescimento mais vegetativo, um desenvolvimento ainda capitalista, mas de baixo metabolismo, por assim dizer.

    Pelo andar da carruagem da globalização, não parece nem um pouco provável que isso aconteça. Enquanto essa possibilidade for imaginável, no entanto, a profecia de Klein, Stengers e Marques não pode ser dada como autorrealizável, e a fé nos poderes emancipadores do capitalismo continuará encontrando muito solo para produzir seus frutos ressequidos.

    MARCELO LEITE, 58, é repórter especial e colunista da Folha.

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