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    A segurança pública dividida em teoria e prática

    RENATO SÉRGIO DE LIMA
    RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO

    06/12/2015 02h03

    RESUMO Ao longo dos últimos 30 anos, o campo das políticas públicas de segurança tem se dividido em debates teóricos que cobrem desde qual deve ser seu escopo até quais disciplinas devem pesar no debate. Enquanto isso, a violência avança, matando cada vez mais brasileiros, em sua maioria jovens, negros e pobres.

    Julio Cesar Guimaraes/UOL
    Durante enterro de cinco jovens no Rio, bandeira evoca tiros com que foram mortos pela polícia
    Durante enterro de cinco jovens no Rio, bandeira evoca tiros com que foram mortos pela polícia

    Segundo o dicionário Houaiss, o adjetivo translúcido é dado a qualquer corpo que deixa passar a luz, mas que não permite que se percebam objetos colocados por detrás dele. É possível ver além, mas não de modo límpido e transparente. São formas e imagens que ficam opacas e invisíveis; ficam na sombra e por vezes mais confundem do que esclarecem.

    Esse adjetivo é o que melhor se aplica hoje às minadas fronteiras que delimitam tanto o campo organizacional das políticas de segurança pública implementadas nos últimos 30 anos quanto as tentativas de avançar no conhecimento acadêmico acerca da relação entre crime, violência e Justiça no Brasil.

    Se olharmos para essa relação, no que diz respeito às políticas públicas de segurança, o Estado parece funcionar a partir de um forte paradoxo que nos faz lidar cotidianamente com elevadas taxas de impunidade e baixíssima capacidade de apuração e responsabilização, erodindo a confiança nas leis e nas instituições.

    Por outro lado, as instituições de segurança pública e Justiça criminal, premidas pelas cobranças da mídia e da opinião pública, são regidas pela ideia de que algo precisa ser feito a qualquer custo para conter os "criminosos", dando margem para medidas de extremo rigor e para a desconsideração de garantias, em uma dinâmica de seletividade penal que atinge, proporcionalmente, mais jovens, negros e pobres.

    Jovens, negros e pobres eram Roberto de Souza Penha, 16, Carlos Eduardo da Silva de Souza, 16, Cleiton Correa de Souza, 18, Wilton Esteves Domingos Junior, 20, e Wesley Castro Rodrigues, 25, mortos pela polícia do Rio, que disparou mais de cem tiros contra o carro em que voltavam de uma comemoração no domingo (29). Ao menos 50 acertaram o veículo,.

    Nesse paradoxo, o Estado, por meio de seus vários poderes e instâncias, tem atuado a partir de um oneroso sistema de segurança pública, que fica recorrentemente paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas e jogos corporativos que respondem mais às lógicas particulares do que ao ideal de redução da violência e garantia de direitos.

    O resultado é que as polícias são vistas como instituições que mais geram temor do que confiança e respeito, e o Ministério Público e o Poder Judiciário aparecem distanciados da realidade e voltados para a punição dos mais fracos, recebendo sem maiores questionamentos o resultado do filtro realizado pelas polícias.

    Na brecha e no cotidiano das periferias metropolitanas, o medo e a insegurança acabam fortalecendo o crime e pautando a relação entre polícia e comunidade; entre Estado e sociedade.

    Não à toa ficamos anestesiados diante da violência que, segundo os Anuários Brasileiros de Segurança Pública, resulta anualmente em quase 60 mil pessoas assassinadas, 48 mil estupros, mais de 3.000 mortes decorrentes de intervenção policial e quase 400 policiais assassinados. A violência nos dessensibiliza e, em vários momentos, é cultuada como resposta possível do Estado frente ao crime ou, até mesmo, como recurso legítimo frente às estruturas desiguais da sociedade brasileira.

    DISPUTAS

    Dito isso, observa-se que o campo que se aglutina em torno do que empiricamente tem se convencionado chamar de segurança pública é, no plano do debate político e das políticas públicas, um campo perpassado por disputas acerca do significado de lei, ordem e segurança que travam avanços pontuais na redução da violência e retroalimentam práticas institucionais e culturas organizacionais pouco democráticas.

    Porém, se deslocarmos nosso olhar para a produção acadêmica que cuida de compreendê-lo, ele é também, de forma subsidiária, palco de fortes disputas de saberes em torno da legitimidade da nomeação do que pode ou não fazer parte de suas fronteiras.

    Existe hoje na universidade uma complexa batalha epistemológica entre diferentes teorias do conhecimento e que, mais do que apenas delimitar as fronteiras do campo, coloca em jogo as balizas sobre como as ciências sociais interpretam a realidade contemporânea.

    Por essa batalha, há uma disputa ontológica, na qual diferentes abordagens e leituras tentam delimitar qual é o objeto legítimo de estudos –violência, direitos humanos e segurança pública ou as causas estruturais da violência e da desigualdade.

    Há, ainda, uma disputa discursiva acerca de quais são as regras que regulamentam os discursos que podem receber o status de científico. E, por fim, há uma disputa em torno do reconhecimento de quem são os sujeitos que podem proferir esses discursos científicos e qual o estatuto daqueles sobre quem se fala.

    São oposições entre diferentes saberes que se pretendem competentes para enunciar o sentido do campo e, com isso, definir quais as fronteiras e os limites entre os diversos territórios explicativos que estão a operar no país –com implicações em agendas de pesquisas, no reconhecimento dos sujeitos do saber; em linhas de financiamento e nos termos do debate público.

    CRIMINOLOGIA

    Historicamente, a origem dessas disputas acadêmicas pode ser buscada na própria forma como se desenvolveu o campo dos estudos sobre crime, polícia e Justiça no Brasil. Em um primeiro momento, eram os juristas ligados ao direito e ao processo penal os que buscaram dar conta das dimensões sociológicas e criminológicas do debate sobre estes temas, tentando incorporar autores e teorias que em outros contextos foram se desenvolvendo sob a denominação de criminologia.

    Esta, por sua vez, tem origem no final do século 19 e resultou em cursos de graduação e pós-graduação, especialmente no contexto anglo-saxônico, visando permitir uma formação nos diversos aspectos que envolvem o fenômeno criminal e o seu controle.

    No Brasil, no entanto, a criminologia se limitou desde sempre ao espaço de uma disciplina nos cursos de direito, geralmente ministrada por operadores jurídicos e sob influência do discurso da chamada criminologia crítica, que nasce nos anos 70 a partir da confluência dos estudos do "labeling approach", da teoria marxista aplicada aos estudos das causas estruturais do crime e das relações entre punição e estrutura social.

    A criminologia crítica teve grande impacto no desenvolvimento de vários estudos até os anos da década de 1980, denunciando a seletividade penal e o papel do sistema penal como mecanismo de manutenção da ordem social em toda a América Latina, especialmente no período em que o continente era o cenário de governos ditatoriais.

    Nas últimas décadas, no entanto, há uma importante novidade no campo: o desenvolvimento no Brasil de uma rica vertente de estudos empíricos sobre os temas tradicionais da criminologia, mas conduzidos não mais por juristas, e sim por pesquisadores com formação em sociologia, antropologia e ciência política, descortinando importantes evidências e trazendo complexidade a um debate científico antes dominado por apriorismos teóricos produzidos em outros contextos.

    Diversos espaços de debate sobre os resultados das pesquisas realizadas por essa nova vertente foram sendo criados e viabilizaram a consolidação de uma importante rede de pesquisa, nucleada em instituições como o Instituto Nacional em Estudos Comparados em Administração de Conflitos (Ineac), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Violência, Democracia e Segurança Cidadã, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros.

    Essa nova vertente buscou incorporar o legado da criminologia crítica latino-americana e da contribuição de Michel Foucault e, ao mesmo tempo, trazer novas perspectivas teóricas, através da utilização de autores antes pouco considerados, como os clássicos Max Weber e Norbert Elias.

    Para além da das causas da violência estrutural da sociedade brasileira, ressalta a complexidade do real e identifica atores e instituições que operam valores, éticas, normas e sentidos da violência. Entretanto a emergência de novos centros e núcleos de pesquisa sobre violência e segurança pública, aqui servindo de síntese empírica de diversas correntes e temas tratados nos últimos 25 anos, ampliou as possibilidades de reflexão mas também de interação entre a universidade, as instituições policiais e o poder público.

    Nesse movimento, ao trazer os operadores da segurança pública para o primeiro plano de análise, essa nova vertente os converteu em sujeitos de fala com os quais se pode discutir, mas não sem antes potencializar as fricções da tensa relação entre conhecimento científico e suas implicações práticas.

    A despeito de progressos pontuais na aproximação de diferentes segmentos e perspectivas, as desconfianças entre e inter produtores de conhecimento acadêmico e profissionais da segurança pública são mútuas, densas e, por vezes, tensas. São inúmeras disputas pela legitimidade do saber que, mais do que contribuírem para a compreensão da realidade, estão a obnubilar o campo.

    Enquanto buscamos uma "verdade" em campo tão minado e disputado, a violência continua a fazer milhares de vítimas todos os anos no país.

    RENATO SÉRGIO DE LIMA, 45, é vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, professor da FGV-Eaesp e coorganizador do livro "Polícia e Democracia: 30 anos de Estranhamentos e Esperanças" (Alameda).

    RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO, 47, é conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, professor da PUCRS e membro do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos.

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